No caminho do Mar Morto, Jerusalém esquece que é uma cidade e se transforma. Começa o deserto rochoso, a estrada se enche de caminhões a caminho do grande porto de Eilat e à frente, em um planalto enorme rodeado de verde, domina a colônia de Ma´ale Adumim (40 mil habitantes). À esquerda, desenvolvido em meio à paisagem bela, o quadro é outro: ali está o muro de concreto que isola a Cisjordânia e, ao pé, pequenos barracos destroçados que um dia abrigaram vida, que um dia foram um lugar, e hoje são sucata empilhada. Ali, em Anata, Israel realizou sua última demolição na capital, casas de palestinos que foram derrubadas entre 23 e 25 de janeiro. Em todo ano de 2011, 622 estruturas foram derrubadas pelo governo israelense, das quais 36% (222) eram moradias particulares e o restante eram infraestruturas essenciais para a subsistência, como depósitos de água, granjas de animais ou propriedades agrícolas. 1.094 palestinos tiveram que se mudar ao ver destroçado seu lugar ou seus meios de vida, praticamente o dobro de 2010. Entre eles, ainda, haviam 609 crianças, arrancados de sua rotina, sua escola, seu centro de saúde. A estatística vem do Comitê Israelense contra a Demolição de Casas (ICAHD) e se contrata com os informes das Nações Unidas.
Mas por que estão tirando essas casas? Ann Harrison, diretora adjunta do programa da Anistia Internacional para o Oriente Médio e Norte da África, o explica. “Cisjordânia está dividida em zona A, B e C. Nesta última, Israel tem plena autoridade em assuntos civis e no controle da segurança. Isso supõe que quase 62% da terra palestina são controlados por eles. Nessas zonas, nas quais vivem 200 mil pessoas (entre Cisjordânia e Jerusalém Leste), as restrições de movimento e de construção são muito elevadas. Cerca de 94% dos pedidos de licença de obras são rechaçadas, essa é a tendência da última década, enquanto a população continua crescendo com uma média de cinco filhos por família. Os palestinos se veem obrigados a construir onde não podem, mas onde precisam”, relata.
Segundo a taxa atual de crescimento demográfico, a ONU afirma que em Jerusalém Oriental a diferença entre a necessidade de moradia entre os palestinos e as construídas legalmente era de ao menos 1.100 ao ano (segundo o balanço de 2010; o de 2011 ainda não está fechado). O problema também chega à Faixa de Gaza, apesar do plano de desconexão de 2005 que tirou de lá os últimos colonos. “Isso não impede que o Exército entre de vez em quando para demolir algo”, denuncia Raji Sourani, que está à frente do Centro Palestino pelos Direitos Humanos (PCHR).
Israel insiste que está aplicando a lei e as divisões dos Acordos de Oslo, e que não pode consentir com a construção de “estruturas ilegais”, explica a assessoria do primeiro ministro, Benjamín Netanyahu. O argumento dos palestinos é que conseguir uma permissão é um “caro, longo e muitas vezes infrutífero processo” que não resolve sua urgente necessidade de espaço e que não cairiam na ilegalidade se não fosse a “asfixia” a que os submete Israel, destacam os informes da Sociedade para o Desenvolvimento Al Maqdese. Um exemplo: só 13% da superfície de Jerusalém Oriental está catalogada como edificável, sendo que a zona “legal” se encontra hiper povoada e são cada vez mais habituais os casos de exílio ou de tentativa de expansão em zonas vetadas. Já 35% das terras da zona palestina de Jerusalém estão sendo confiscadas “para fazer assentamentos ilegais com 195 mil israelenses” e 18% da Cisjordânia têm sido declarados “zona militar fechada”, o que veta as edificações palestinas e limita a circulação de pessoas, especialmente no Vale do Jordão nos montes do sul de Hebrom, denuncia o informe “Seguros em casa?”, editado pela Anistia.
As demolições são realizadas habitualmente sem aviso prévio, segundo os afetados, e com a notificação correspondente, segundo Israel. O enviado humanitário das Nações Unidas nos Territórios, Maxwell Gaylard, avaliza a versão dos palestinos. “Quase não há possibilidade de recolherem seus pertences antes que a máquina comece a quebrar tudo”, denuncia. Quando tudo está quebrado, não há abrigo nem uma indenização, os palestinos buscam acomodação em casas de familiares (sobretudo do marido, o que submete ainda mais a mulher ao clã patriarcal), amigos ou espaços cedidos por ONGs. Gaylard entende que, segundo a jurisdição internacional, “a potência ocupante tem a responsabilidade de proteger a população civil palestina debaixo de seu controle e garantir sua dignidade e bem-estar”. “A destruição de suas moradias e meios de subsistência não é compatível com essa responsabilidade nem com os ideias humanitários”, disse enquanto visitava as casas tiradas em Anata, uma ordem que desabrigou 52 pessoas, 29 delas menores de idade. “Os palestinos precisam de um sistema de planejamento justo e não discriminatório que satisfaça suas necessidades de crescimento e desenvolvimento”, acrescentou.
A ONU afirma, em sucessivos comunicados, que as demolições violam a Quarta Convenção de Genebra, sobre proteção de civis em tempo de guerra, cujo artigo 53 “veta a destruição de uma propriedade se não está militarmente justificado” e impede de igual modo “a transferência de população” (artigo 49). Ao primeiro ponto, Israel responde que todos os palestinos estão sujeitos “por segurança” à lei militar. Ao segundo, simplesmente despreza as repreensões do Ocidente sobre suas “provocantes expansões de colônias”.
Em setembro passado, três relatores das Nações Unidas pediram formalmente a Israel que pare com as demolições que, “por sua natureza discriminatória”, são “completamente inaceitáveis”. “Os israelenses não desejariam ser submetidos a semelhantes práticas”, assinalaram. Não eram funcionários de classe média, senão vozes muito respeitáveis no organismo: Raquel Rolnik, relatora especial sobre direito a uma moradia adequada; Catarina de Albuquerque, relatora sobre o direito à água potável e aos serviços sanitários; e Olivier de Shutter, do direito à alimentação. Todos eles, do escritório da Alta Comissionada para os Direitos Humanos da ONU. Rolnik acaba de começar uma visita de duas semanas à zona, ante à convocação das ONGs que trabalham na zona para que conheça em primeira mão a situação.
Itay Epstein, co-diretor do ICAHD, explica que Israel não só trata de impor uma divisão de terreno que lhe é favorável, nem busca a legalidade acima de tudo, mas que há um importante objetivo, menos claro, atrás das demolições: o empenho em “judaizar” a Palestina. 90% do vale do Jordão (apreciado pela água e pelos cultivos) está nas mãos de Israel, ocupado por 37 colônias, com quase 10 mil residentes (12% do solo, 119 quilômetros quadrados), com 26 reservas naturais (20%, 318 quilômetros quadrados) e com 736 quilômetros quadrados (46% do total) fechados, por ser zona militar.
Sob suas palavras, surgem casos como o de Arabiya e Salim, proprietários de uma das casas tiradas no final de janeiro. Era a quinta vez que as pás mecânicas de Israel destruíam sua casa, Beit Arabiya, a casa de Arabiya. A moradia era um símbolo de resistência, levantada quatro vezes com a ajuda de voluntários internacionais (muitos deles, espanhóis), o ICHD e ONGs locais como Rabinos pelos Direitos Humanos. Na residência, levantada em homenagem à ativista Rachel Corrie (morta ao tentar frear as demolições), estavam no momento do despejo o casal e seus sete filhos. Os operários se apresentaram às 11 da noite do dia 23 de janeiro, uma escavadeira com potente reforço militar que acabou com esta casa e várias estruturas residenciais e agrícolas vizinhas na zona de Jahalin, uma comunidade beduína vizinha. Outras 20 pessoas expulsas do lugar no meio do deserto, em um frio inverno.
No dia seguinte, tiraram a casa dos Abu Omar, levantada em 1990 em terrenos de sua propriedade em Anata. Onde estava então o problema se a terra era sua? Israel sustentava que a área estava “reservada para uso agrícola”. Por isso já havia sido demolida em 2005. Demoraram todos estes anos para recuperá-la, tijolo por tijolo, e no dia 24 de julho passado a terminara. Seis meses depois, voltaram a estar desabrigados. Um grupo de 17 pessoas, entre eles várias crianças. E menos de 12 horas depois deste acontecimento, outras duas casas foram eliminadas na aldeia beduína de Umm Al Kheir, ao pé da colônia de Karmel, em plena expansão. Em uma residia um casal de idosos; na outra, uma viúva com nove filhos. Os soldados ficaram, além disso, com o trator com o qual a mulher lavrava a terra.
Todos os afetados ficaram circulando pela zona, sem saber bem que caminho tomar, onde refazer sua vida. Durante os primeiros dias, recolheram tábuas, malas e colchões, o pouco que poderiam continuar usando. Um pequeno tesouro. A rede de cooperação tecida em torno das demolições está lhes ajudando, mas demora a apagar-se a aparência de desolação total, a esperança perdida com o teto que as máquinas derrubaram.
Essa história se repete em uma das zonas mais afetadas por estas demolições, Jiftlik, no Jordão, onde se concentrou no ano passado 32% do total de atuações de Israel (109 estruturas demolidas, delas 89 residenciais, e 401 deslocados, segundo o ICAHD). A população, de algo mais de 5 mil habitantes, tinha “extensas terras de lavoura” antes de 1967 e sua guerra. Agora, esse espaço é zona militar protegida. Em 2005, denuncia Al-Maqdese, o Ministério da Defesa de Israel elaborou um “plano de traçado” que determinava onde podiam viver os palestinos. O fizeram “sem avisar aos vizinhos nem abrir período para argumentações”. 40% das moradias ficaram fora desse limite permitido, sendo que 30 edifícios foram reprovados nesses últimos anos e há 10 ordens de demolição mais pendentes. As casas que ficaram dentro do perímetro legal também necessitam tirar licença prévia se fizerem obras, uma documentação que demora ao menos um ano e meio, explica a ONG.
A última grande luta contra os despejos forçados é a ameaça de demolição de um grupo poderoso de famílias em Khan al Ahmar. Israel planeja que os 2.300 residentes beduínos que agora estão nesse canto da Cisjordânia vão viver a 300 metros do aterro municipal de Jerusalém, uma zona insuportável pela orografia (condições do relevo) e pelas condições sanitárias (recebe 1.100 toneladas de lixo por dia). A campanha da Anistia Internacional está sendo muito forte para evitar o deslocamento destas 20 comunidades. O ministério, que tem o plano escrito desde o verão, tem dito que não vai executá-lo por completo, mas não esclarece sua posição. Inclusive, tem prometido que, uma vez reassentados, os beduínos terão acesso às conexões de água e eletricidade. Está sendo criado um comitê para protegê-los e planejar suas exigências; sendo: regressar ao deserto do Neguev, de onde os tiraram nos anos 50; ficar onde estão com melhores serviços ou pactuar um deslocamento com garantias.
É emblemática nesta zona a chamada “escola das 3 mil rodas”, que também corre o risco de ser derrubada, junto com moradias. Quase uma centena de crianças se beneficiam do edifício; até há pouco careciam de educação, porque tinham que deslocar-se 30 quilômetros até os colégios mais próximos da UNRWA, cruzando estradas, buscando alguém que os levassem, a poucos metros de Kfar Adumim, uma colônia, de onde veio a denúncia ante o governo israelense que, já em 2009, deu a primeira ordem de demolição. A ONG italiana Vento da Terra, junto a Mãos Unidas e várias missões combonianas, levantaram a administração, um banheiro, um pátio.... Reconhecidos pelo Ministério de Educação palestino, as professoras são meninas do povoado formadas como professoras, fechando o círculo de dignidade e oportunidades. Mas ninguém sabe o quanto ainda fica em pé. O Executivo italiano e sua Conferência Episcopal estão pressionando para evitar o fim. Seria importante, mas apenas o começo. Segundo a ONU, hoje há cerca de 4 mil ordens de demolição pendentes de execução.
Fonte: Brasil de Fato
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