segunda-feira, 9 de abril de 2012
Viva Millôr
Millôr Fernandes sempre buscou a imperfeição. No jornalismo, no teatro e nas artes plásticas, em que costuma prevalecer a cópia e a reprodução espelhada da realidade, Millôr sempre procurou recriá-la, através da caricatura do bom senso e o do senso comum.
“Se uma imagem vale por mil palavras”, insistia Millôr, “como seria possível afirmar isso sem o uso da palavra?”. É uma frase que revela o fascínio pela linguagem e a predileção pela palavra escrita, que ele soube explorar em suas múltiplas relações com a imagem, principalmente nas charges políticas, poéticas, provocativas ou pelo puro interesse gráfico, como no caso dos seus haikais (“esnobar é exigir café fervendo e deixar esfriar”, dizia um deles).
O quadrado destinado a Millôr nos grandes veículos por onde ele passou, além de ser um respiro, verdadeiro alento de humor e inteligência em meio a textos declaratórios e sem-graça, era um exemplo concreto do poder de síntese da palavra escrita; da liberdade de expressão artística; da derrubada das fronteiras entre popular e erudito, ficção e realidade, poesia e prosa. Em um desses célebres quadrados do Millôr, o leitor do Jornal do Brasil se deparava com um círculo acompanhado da seguinte legenda: “Hoje o quadrado foi dar uma circulada!”.
Até no uso da informática Millôr pode ser considerado um precursor. Em 1987, quando colaborava na revista Isto É, passou a usar um computador PC-XT para produzir uma série de desenhos chamados “Arte é Intriga”. Enquanto as redações estavam se digitalizando, seu objetivo era o de testar os limites do jornalismo nesta sua nova fase tecnológica, e redescobrir um ritmo próprio da mídia impressa, que já começava a querer concorrer com os suportes eletrônicos (antes a televisão, depois a internet).
Sempre reclamamos que temos poucos filósofos brasileiros. Agora que Millôr partiu, compete-nos analisar a filosofia debochada, tipicamente carioca do “filósofo do Meyer”, como Millôr gostava de se definir. E se filosofar é criar conceitos, Millôr nos deixou milhares deles através de suas frases, uma das suas especialidades. A minha preferida é esta aqui, que parece encerrar toda uma filosofia de vida: “desconfie de quem lucra com o seu ideal”.
*Silvio Mieli é jornalista e professor da faculdade de Comunicação e Filosofia da Pontifícia Universidade Católica (PUC – SP).
Artigo originalmente publicado na edição impressa 475 do Brasil de Fato
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