terça-feira, 10 de abril de 2012
Em São Paulo, a saúde é caso de polícia
“Operação Sufoco” mostrou despreparo para lidar com os dependentes químicos na Cracolândia
Por Ricardo Rossetto
Três meses depois de implantado, o Plano de Ação Integrada Centro Legal, que envolve as polícias e os órgãos estaduais e municipais ligados à segurança, saúde e assistência social, registra um balanço pouco animador. Apesar das quase 30 mil abordagens policiais na estigmatizada região da Cracolândia (Nova Luz) e das mais de 25 mil abordagens de agentes de saúde, dados do último balanço da Polícia Militar mostram que pouco foi conquistado no que tange à recuperação psicossocial dos dependentes químicos. Para especialistas, o maior erro do Governo do Estado foi pautar a atuação a partir de um pressuposto de que a degradante situação no local era provocada pela presença da droga.
Cerca de 400 usuários ocupavam as áreas em torno das avenidas Duque de Caxias, Mauá, Cásper Líbero e São João. Depois da ação das forças públicas, a partir do dia 3 de janeiro, os dependentes se espalharam por diversos bairros da região, criando inúmeras minicracolândias. O saldo de 304 presos, mais da metade da população local, denota a ineficiência do plano, também conhecido como Operação Sufoco, que trata com mecanismos coercitivos um problema de saúde pública, ao confundir usuários com traficantes.
Segundo o desembargador Antônio Malheiros, do Ministério Público do Estado de São Paulo, a ação atrapalhou inúmeros projetos sociais e agentes de saúde, que acompanhavam, havia algum tempo, os dependentes locais e buscavam criar vínculos para encaminhá-los a um tratamento. “A ação atropelou os trabalhos das equipes que atuavam no local. Uma série de audiências de rua para decidir encaminhamentos a crianças e adolescentes da região estava prevista. Agora, temos de repensar a estratégia. A ação foi desastrosa e boicotou um trabalho que vinha sendo feito desde 2009 nas áreas de saúde e assistência social.”
O vereador Jamil Murad (PCdoB), ex-diretor do Sindicato dos Médicos de São Paulo, segue a mesma linha de Malheiros e condena a ação precipitada da polícia: “O poder do Estado pulou na frente com o problema da repressão, colocando a polícia na frente da operação. Estive presente no dia que a operação na Cracolândia começou, e conversei com o pessoal da saúde [da área de assistência social], por telefone. Eles não participavam daquilo. O município não estava integrado à ação da PM. A ação foi baseada numa tese errada de provocar dor e sofrimentos aos dependentes”, disse Murad.
Procissão de zumbis
Expulsos de um cortiço desolador onde se aglomeravam nas imediações da Rua Helvétia, os craqueiros passaram a vagar pelas ruas do centro, envoltos em cobertores que lhes curvam o dorso magro e frágil. O rosto, cadavérico, traz um olhar melancólico de quem quer se tratar, mas não consegue largar o vício.
As 409 internações involuntárias contabilizadas até então, não contribuem para configurar a ideia de um cenário propício à resolução dessa chaga social que chamou a atenção de todo o País. Pelo contrário. Segundo pesquisas do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes, coordenado pelo médico e professor de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Dariu Xavier da Silveira, 98% das pessoas que passam por esse tipo de tratamento compulsório recaem nas drogas depois que termina o período de internação. Para o professor, os trabalhos de maior sucesso na recuperação desses indivíduos são os que adotam o modelo ambulatorial, realizado por equipes multidisciplinares. Nesses locais, os usuários vão se acostumando paulatinamente à abstinência da droga, e se readaptam ao convívio em sociedade.
Carlos Neder, médico e vereador de São Paulo pelo PT, também é contrário a qualquer forma de internação não consensual. “Sou contrário à ideia de internação compulsória e mecanismos coercitivos. A lógica e a concepção que está implementada hoje leva a uma dificuldade adicional para fazer uma abordagem diferenciada, que não seja da repressão ou da atenção médica assistencial curativa”, explica Neder. “Se nós tivéssemos essas equipes médicas multiprofissionais preservadas, com participação do psicólogo, do assistente social, do psiquiatra e de tantas outras categorias, teríamos uma condição melhor de fazer esse tipo de abordagem com os dependentes, inclusive com equipes dos agentes comunitários de saúde.”
Infraestrutura atual
Gonzalo Vecina Neto, médico, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e superintendente corporativo do Hospital Sírio-Libanês, ressalta o subfinanciamento do sistema de saúde pelo poder público como um dos obstáculos à melhoria da eficiência e da atenção à saúde da população. Para ele, deve haver uma integralidade entre as três esferas do governo (federal, estadual e municipal), que devem unir forças para combater o problema.
Apesar de a presidenta Dilma Rousseff ter lançado, em dezembro do ano passado, o Plano de Enfrentamento do Usuário de Crack e Outras Drogas, o País, em termos gerais, ainda não dispõe da infraestrutura necessária para tratar os dependentes de substância químicas. Os hospitais públicos não estão preparados para recebê-los, e os poucos centros de internação mantidos pelo governo são incapazes de suprir a demanda.
Um estudo da Confederação Nacional de Municípios traz à tona a dimensão do problema: 98% das cidades brasileiras possuem problemas com usuários de crack, mas poucas, de fato, têm programas para resolvê-los.
“O crack é a ponta do iceberg. A sociedade trata de forma muito hipócrita a questão das drogas. Com repressão não tem solução”, pondera Vecina. “As pessoas têm o direito a usar o que quiserem, com a consequência da sua decisão. Enquanto olharmos pra essa questão com o olhar da polícia, com um olhar higienista, vamos ficar limpando gelo”, conclui.
Entregue com mais de um mês de atraso, o Complexo Prates, no Bairro do Bom Retiro, é o primeiro centro que reúne ações de saúde pública e de assistência social no tratamento de dependentes químicos na cidade de São Paulo. No local, até 1.200 pessoas poderão ser atendidas diariamente, em especial os viciados das regiões da cracolândia.
A secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Alda Marco Antônio, reconhece que é difícil resolver o problema dos dependentes, mas valoriza a criação do complexo como um meio que facilitará a recuperação dos usuários de drogas. “É difícil dizer que os problemas serão resolvidos definitivamente, mas, agora, a cidade de São Paulo tem um equipamento que vai buscar esse objetivo, que vai atrás dessas pessoas e tentar atraí-las para o tratamento.”
* Este texto foi produzido no curso de jornalismo “Descobrir São Paulo, Descobrir-se Repórter”, do Projeto Repórter do Futuro, uma parceria entre a Oboré Projetos Especiais de Comunicação e Artes e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), realizado em janeiro e fevereiro de 2012.
Fonte: SPressoSP
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