terça-feira, 10 de abril de 2012

França: a surpreendente maré vermelha


Ao entrar na reta final, a menos de um mês do primeiro turno (em 22 de abril), a disputa pela presidência da França foi marcada por uma novidade importante. A Frente de Esquerda, que reúne um amplo arco de organizações progressistas, realizou, em 18 de março, o maior dos comícios da campanha, até o momento. Reuniu entre 70 mil e 120 mil na emblemática Praça da Bastilha. O ato marcou o ascenso de seu candidato, Jean-Luc Mélenchon, que já aparece, em algumas das sondagens (veja o ótimo site comparativo do Le Monde), como o terceiro colocado, com 13% das intenções de voto. A subida é ainda mais saborosa por coincidir com a queda de Marine Le Pen, a candidata da extrema-direita.

O grande comício conseguiu mobilizar muito mais que os militantes da Frente de Esquerda. Muitos dos presentes diziam terem comparecido ao local simbólico da revolução francesa porque esperam que Mélenchon crie uma dinâmica capaz de levar o candidato do Partido Socialista (PS), François Hollande, mais para a esquerda. De todo modo, sabem que Mélenchon – a grande revelação deste pleito, apesar do desprezo da mídia e analistas políticos – apoiará o socialista no segundo turno.

Há uma probabilidade que o candidato da Frente de Esquerda cresça, em função dos futuros debates, que agora apresentarão os candidatos em condições igualitárias. Mélenchon, que subiu com um discurso direto e combativo, certamente saberá aproveitar-se da fresta de sol que se abriu no final da tarde do domingo chuvoso de Paris — quando defendeu a revolução da cidadania, associando-a a uma nova tomada da Bastilha.

Além de reunir, no comício de lançamento, quatro vezes mais público que o candidato do PS, o representante da Frente de Esquerda conseguiu rara unanimidade midiática. Agora, todos os jornais reconheceram o sucesso do ato em prol de uma 6°. Republica. Seu discurso foi curto – 20 minutos – mas suficiente para inflamar a multidão. Bom tribuno, Jean-Luc Mélechon fez uma fala histórica, relembrando a constituinte de 1789, a insurreição de 1793, a comuna de Paris (18 de março 1871). Pela primeira vez, na França, um candidato usa um espaço publico para organizar um encontro eleitoral.

Jean-Luc Mélenchon é um antigo trotskista da ala “lambertista”. Mais tarde, tornou-se seguidor do ex-presidente (pelo PS) François Mitterrand. É excelente orador, brilhante polemista, o único candidato a molestar os jornalistas parisienses – principalmente os ligados a Sarkozy. É capaz de desconstruir os argumentos do adversário em poucos minutos e de sair das armadilhas preparadas por certos homens da mídia. Tem uma bagagem intelectual superior à de seus adversários. O jeito brigão e irônico não tira o brilho de suas intervenções. Os franceses adoram um bom debate de ideias e gostam de contraditórios. Há um saudosismo ligado à imagem deixada por Miterrand e pelo velho comunista Georges Marchais. Mesmo os opositores de direita reconhecem e relembram sempre os dois grandes animais políticos.

O candidato do Front de Gauche é também um grande articulador. Conseguiu reunir velhos inimigos — comunistas e trotskistas – numa mesma coalizão política para enfrentar Nicolas Sarkozy. Além disso, trouxe para o Front alguns companheiros do PS. Vale aqui um destaque: O Partido Comunista Francês (PCF) encontrava-se extremamente fragilizado politicamente. Na ultima eleição presidencial, sua candidata, Marie George Buffet, não conseguiu chegar a 2% dos votos. Nas eleições legislativas, o partido foi incapaz de formar um grupo político no parlamento, por não ter alcançado 5% dos votos, necessários para ultrapassar a “cláusula de barreira”. Perdeu parte de seus principais quadros políticos – que articularam um movimento reformador em 1989, deixaram a agremiação e criaram, em 2010 a FASE – Federação por uma Alternativa Social e Ecológica. Além disso, endividou-se. O fato de integrarem-se agora à Frente de Esquerda, pode significar, para os comunistas, uma ressurreição política.

A questão que se coloca é: quem serão os novos eleitores de Jean-Luc Mélenchon? De quem ele vai tirar votos? Dos eleitores mais à esquerda do PS? Dos dois partidos trotskistas que não conseguem mais motivar seus eleitores? De operários, de ex-militantes do PC que passaram a votar em Marine Le Pen? Dos anarquistas que sempre boicotaram as urnas? Muitos estavam presentes na passeata da Bastilha.

Nos últimos vinte anos, existe uma tendência de aumento da abstenção nas eleições francesas, provavelmente ligada a uma crise da representação política. Em geral, os eleitores da esquerda são os que mais boicotam as urnas. Quem se favorece desta abstenção é normalmente a direita. Este ano, um dado merece atenção: o número de eleitores inscritos para votar caiu 6%! Muitos usam a abstenção como forma de protesto.

No entanto, os eleitores de esquerda não esquecem o “trauma do dia 21 de abril”, que, em 2002, levou o candidato socialista a ser eliminado pela extrema direita no primeiro turno. Este fato, despertou certa mobilização dos eleitores de esquerda, e o medo de uma repetição do mesmo cenário está sempre presente, o que leva muitos a pregarem o voto útil.


Para a esquerda francesa, a situação é mais complexa. Ela sempre foi diversa, rica no enfrentamento das ideias. Entretanto, raramente consegue traçar uma estratégia de governo que respeite sua próprioa pluralidade. Por exemplo, o EELV-Europe, Ecologie, Les Verts, construiu com o PS um “contrato de mandatos” programático para 2012. Todavia, o acordo terminou gerando polêmicas e os verdes acabaram entrando na lógica perversa de distribuição de cadeiras no parlamento, tendo em vista que o PS é majoritário em todo território nacional. Ou seja, a briga pelo poder terminou sendo mais forte que as proposições alternativas que definem um novo projeto de desenvolvimento e sociedade.

A França tem um sistema eleitoral um tanto ambíguo. Mesmo não sendo bipartidário, dada a existência de vários partidos, somente as duas grandes formações políticas monopolizam o debate eleitoral e se alternam no poder. Na esquerda, o PS; na direita o Partido de União por um Movimento Popular- UMP.

A correlação de forças necessária para fortalecer a democracia e a cidadania política é refém de um sistema eleitoral que termina rejeitando o pluralismo político. PS e UMP já vêm dominando o debate político desde outubro, data em que foram decididas as primárias do PS pelo voto direto aberto (com eleição de François Hollande). Já no partido de direita, o candidato legitimado sem votação interna foi Nicolas Sarkozy.

Entretanto, a campanha eleitoral só agora (19 de março) foi oficializada pelo Conselho Constitucional, que aprovou a lista dos candidatos à eleição presidencial. Serão ao todo dez candidatos. Durante os trinta dias anteriores ao primeiro turno, todos deverão ter, por lei, o mesmo tratamento. O espaço midiático até então controlado pelos dois grandes partidos (PS e UMP) deverá ser equilibrado com os pequenos. Os programas políticos e de generalidades, nas rádios e TVs, são obrigados a contar o tempo de intervenção de cada concorrente. O Conselho Superior Audiovisual é que define as regras para garantir a pluralidade da expressão política, definindo o tempo das intervenções, as análises e reportagens políticas. A imprensa escrita não está submetida a este tipo de regulamentação. Os candidatos são livres para criar acessos à comunicação virtual. Todavia, na véspera das eleições todos os sites montados por eles são fechados.

Apesar destes dispositivos, a bipolaridade é uma realidade. A própria imprensa contribui com esta anomalia democrática: o debate sempre gira em torno dos dois principais candidatos. O discurso sugere que apenas eles têm vocação para governar, o que lhes assegura a maior parte dos votos. O apoio aos candidatos de extrema esquerda é, por exemplo, taxado de mero voto de protesto

Estranha concepção da democracia representativa, tendo em vista que os partidos políticos são, no sistema atual, os vetores da democracia. É neles, hoje, que se elaboram as proposições concretas que devem constituir os programas alternativos de governos. São, igualmente, os meios pelos quais os indivíduos podem pesar sobre os serviços públicos, sobre os rumos da vida política de um país. Neste sentido a defesa do pluralismo é a essência do revigoramento da democracia.

Fonte: Opera Mundi

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