sexta-feira, 20 de abril de 2012

Islândia: do ardor revolucionário à descrença


O rapaz empunhou o megafone: "Esta é uma mensagem dirigida a todos os meios de comunicação!" Atrás dele, Jaime I, conquistador de berberes, dominava do alto de seu cavalo a Plaza de España, em Palma de Maiorca. O céu estava azul. "Há uma mudança em curso. Em nome dela, estamos nos reunindo em várias partes do mundo." Eram todos indignados naquela tarde de maio do ano passado e, como outras multidões de jovens em mais de cinquenta cidades espanholas, estavam ali para protestar contra a crise econômica.

Ao fundo, um manifestante começou a escalar a estátua equestre. "Temos o exemplo de um povo que iniciou este movimento soberano já faz tempo. O povo islandês soube agir em favor da justiça social. Eles se negaram a pagar a dívida pública contraída por terceiros e conseguiram punir os responsáveis pelos abusos. Tudo isso graças à união do povo que tomou as ruas. Nosso objetivo é seguir o exemplo deles e, por isso, damos a esta praça o nome de Plaza de Islandia!" O escalador fincou na mão erguida do conquistador a bandeira desfraldada da Islândia, que tremulou sobre a praça. Nas semanas seguintes, os indignados chegariam a quase 8 milhões e gritariam nas ruas: "Todos somos Islândia!"

Começo

Três anos antes, em outubro de 2008, o sistema bancário islandês entrara em colapso, levando de roldão a economia do país. Em novembro, 6 mil pessoas lotaram a praça do Parlamento, em Reykjavík, para exigir a renúncia do governo. Eram quatro horas da tarde, uma quase noite de céu carregado. Desprendendo-se da massa, uma pequena multidão marchou em direção à delegacia de polícia, disposta a libertar um jovem ativista preso na véspera. Seguiu-se um acontecimento inédito na Islândia, desde sempre um país mais afeito aos consensos do que aos conflitos.

Jovens começaram a esmurrar a porta do prédio. Espantosamente, a primeira reação da polícia foi apagar as luzes para fingir que não estava.  Alguém perguntou:"Onde estão as pedras?" – e lamentou que a ausência delas fosse "típico da gentileza islandesa". Enquanto a porta cedia aos chutes, de uma das laterais do edifício, cozida à parede, surgia a tropa de choque. De braços entrelaçados, barrando a entrada, os policiais foram xingados de fascistas. "Se conseguirmos invadir e libertar o nosso companheiro, isso significará que o governo acabou!", urrou um rapaz, incendiando a massa. A fileira de policiais se abriu; do escuro, surgiu o preso, o rosto coberto por um gorro, e se atirou nos braços da multidão. Um manifestante ergueu o punho: "Agora somos franceses!"

Derrocada

A derrocada islandesa foi súbita e violenta. As correias de transmissão num país de 320 mil habitantes são eficientes e qualquer distúrbio dissemina-se com rapidez pela cadeia econômica. Um professor da Universidade da Islândia costuma brincar que o país é o paraíso dos macroeconomistas – tudo ali acontece mais rápido e de maneira concentrada. Se fosse possível criar um laboratório para testar os efeitos de um colapso financeiro, a Islândia estaria pronta para o papel. Eles quebraram antes, os protestos começaram antes, o governo caiu antes, o FMI foi chamado antes, a população se organizou antes e o país adotou, antes, uma estratégia para enfrentar a crise. É também ali que se vislumbram, antes, alguns desdobramentos possíveis da devastação provocada pelos colapsos financeiros.

Ísleifur Thórhallsson, ou Ísi, como é conhecido, está na faixa dos 30. A exemplo de boa parte de seus compatriotas, fala um inglês impecável, graças à excelência do sistema público de educação. Em meados da década passada, vendeu sua distribuidora de cinema a um dos maiores grupos de entretenimento do país. Foi nos escritórios da empresa, da qual se tornou funcionário, que em 6 de outubro de 2008, uma segunda-feira, ele e os colegas se aglomeraram diante da televisão para assistir ao pronunciamento do primeiro-ministro Geir H. Haarde: "Diante da tempestade que se inicia, exorto as famílias a conversarem entre si, a não se deixarem dominar pelo desespero..."

Desespero

Ísi [1] relembra: "Quando ele encerrou com 'Que Deus proteja a Islândia', todo mundo pensou: 'Fodeu.'" Alguns saíram atrás de um caixa 24 horas para ver se o sistema ainda funcionava. Outros ligaram para casa e tentaram acalmar a família. Muitos pensaram em estocar comida. "Foi a semana louca", prossegue Ísi."Em sete dias, todos os bancos quebraram. Sem recursos externos, a Islândia talvez não conseguisse mais importar comida e, como quase nada cresce nessa terra gelada, nós passaríamos fome. Nunca tínhamos ouvido falar em 'segurança alimentar'." De um dia para outro, a carruagem virava abóbora. "Nem isso", reagiu um cidadão perplexo, "uma abóbora a gente come."


Entre os dias 30 de setembro e 9 de outubro de 2008, a Islândia sofreu o que um dos relatórios do FMI – geralmente escritos com a ênfase das paredes beges – descreve como "uma crise financeira de proporções catastróficas". Como relatado por piauí ("A grande ilusão", janeiro de 2009), o sistema bancário quebrou, a moeda perdeu metade do valor, a maioria das empresas ficou insolvente e a Grã-Bretanha, na tentativa de congelar em seu território os bens do Tesouro islandês, de modo a ressarcir os correntistas britânicos de uma das instituições falidas, incluiu o Banco Central islandês na lista de organizações terroristas, junto à Al Qaeda e aos talibãs.

Os antecedentes do colapso remontam a 2003, quando o país decidiu privatizar seu sistema bancário. Até o início da década de 90, a economia da Islândia era essencialmente extrativista, com forte controle do Estado. Farto em peixes e energia geotérmica, o país se guiava pela noção de bem comum. As riquezas naturais pertenciam à coletividade – pescar e aquecer-se eram direitos inalienáveis de cada cidadão. Engastado no sistema nórdico de bem-estar social, esse arranjo se traduzia numa sociedade igualitária, onde todos contavam com saúde, educação, comida e calor. Nação jovem que obtivera a independência da Dinamarca em 1944, a Islândia lograra dar a seus cidadãos o que lhes bastava para viver.

Estabilidade

Para muita gente nascida no último quartel do século XX, isso veio a parecer pouco. Morria-se num país não muito diferente daquele em que se nascia, numa vida de poucas aventuras. A privatização dos bancos – culminância de um processo iniciado dez anos antes, com a venda para a iniciativa privada da empresa de pesca de Reykjavík – retirava dos políticos a capacidade de controlar o destino do crédito. Pela primeira vez, pessoas sem conexão com os poderes instituídos – e sem interesse em bacalhau – podiam abrir um negócio próprio e se arriscar na exploração das oportunidades.

Em pouco tempo, tomando dinheiro em moeda forte e emprestando em coroas islandesas a uma população disposta a investir e consumir, os três bancos recém-privatizados se agigantaram. A bonança de crédito beneficiou o país, cuja economia cresceu vertiginosamente entre 2003 e 2007: 25 por cento. Mais ainda cresceram os bancos, cujos ativos em 2007 correspondiam a mais de dez vezes o PIB nacional. Apareceram os helicópteros particulares, os camarotes VIPs, as vulgaridades.

Desabamento

Tudo começou a se desfazer no dia 15 de setembro de 2008, quando o banco de investimento Lehman Brothers pediu concordata. O mundo vivia o apogeu do que o economista Simon Johnson, do MIT, chama de "financialização da economia", "um neologismo horrível que exprime o fato real de que o sistema financeiro se tornou grande e perigoso demais". Grande demais, por se espalhar transnacionalmente sem jurisdição específica que o regule e limite. Perigoso demais, por se imbricar em todos os aspectos da vida econômica, desde o funcionamento dos Estados à hipoteca da casa própria – e, claro, criando instrumentos que permitem apostar na quebra de uns e de outros. Numa trama tão apertada, ao menor abalo as partes se recolhem numa súbita contração.

Foi assim com a Islândia. Com espanto, ela viu o mundo recuar, violentamente. Nas semanas que se seguiram à quebra do Lehman Brothers, instituições estrangeiras pediram seu dinheiro de volta e, nessa hora, a irracionalidade do modelo se revelou em toda a sua exuberância: dívida em dólar e euro, aplicação em moedanacional. A coroa islandesa em breve se desintegraria. Era um desses momentos que entram para os livros de história.

Dia Fatídico

Nevava na última sexta-feira de novembro do ano passado. Às nove e meia da manhã, o dia ainda era noite. Estreita e íngreme, a Laugavegur, principal rua comercial do centro de Reykjavík, estava quieta de tanta neve. Num prédio discreto, Thórdur Jónasson, consultor internacional de crédito e risco, já dava expediente. Ele trabalhou no Banco Mundial e no FMI e dirigiu durante anos a agência islandesa de controle da dívida. Deixou o governo em 2007, antes do colapso.

Para Thórdur, a segunda-feira em que o primeiro-ministro Geir Haarde se dirigiu à nação foi o dia fatídico. À noite, o governo aprovou a Lei de Emergência que dispunha sobre como a Islândia enfrentaria a crise: "Diante da quebra iminente dos bancos, ficou estabelecido que os correntistas teriam prioridade sobre quaisquer outros credores – foi essa a medida mais importante." Além disso, as operações domésticas dos bancos seriam estatizadas. O governo garantiria apenas os depósitos das agências islandesas, não os das localizadas fora do país, que agora iriam à liquidação. "Sem a Lei de Emergência", explica Thórdur, "os correntistas islandeses perderiam todos os seus depósitos e também os cartões de crédito, que deixariam de ser aceitos, pois todos os ativos dos bancos seriam transferidos para a massa falida e tratados como garantia aos credores."

Implicações legais

Não era de forma alguma uma opção trivial. Havia sérias implicações legais. Segundo a lei de falências vigente até então, não era permitido distinguir entre diferentes tipos de credores e dar prioridade a uns sobre outros. Os créditos não eram hierarquizados: tanto o Deutsche Bank, o correntista de Londres, como o aposentado de Reykjavík deviam receber o mesmo tratamento na hora de reaver seus valores.
Previam-se consequências políticas gravíssimas. Em suma, ao declarar que o correntista teria prioridade, o governo, no mesmo fôlego, mandava os credores internacionais – bancos, hedge funds, investidores institucionais – para o fim da fila. Dada a desproporção entre o sistema bancário islandês e a economia do país, a conclusão era uma só: os bancos islandeses, que, pela nova lei, tornavam-se bancos da Islândia, visto que administrados pelo Estado, não pagariam suas dívidas junto aos credores internacionais.

Jón Steinsson é um economista da Universidade de Columbia, em Nova York. Alto, com um sorriso cheio de dentes, tem 35 anos, mas não aparenta mais de 30. Foi convocado pelo primeiro-ministro no momento mais crítico: "No domingo, dia 5, alguns de nós insistiam em que essa era a decisão certa e que era preciso anunciá-la rápido." O governo, porém, não se decidia, temeroso das consequências. "Às três da manhã, me ligaram em casa: 'Vamos fazer o que vocês estão sugerindo.'" O governo deixaria que os bancos quebrassem.

FMI

A essa altura, técnicos do FMI já estavam no país, em conversas com as autoridades, mas o governo resistia em trazê-los para perto. "Na segunda-feira, explicamos a eles o que pretendíamos fazer. De um lado da mesa, eu e um colega; do outro, dois caras doFundo. Acho que foi só ali que eles souberam do plano: 'Hoje, depois que os tribunais fecharem, vamos propor uma lei com tais e tais características. Ela será aprovada à meia-noite.' A primeira reação deles foi nos chamar de loucos, como se estivéssemos prontos para produzir um apocalipse financeiro de consequências realmente catastróficas."

Na frase do economista americano Paul Krugman, quando todos diziam que a Islândia devia fazer zig, ela fez zag.

Se, em 2008, o quadro era incerto para o governo, para a população islandesa ele era francamente incompreensível. Na melhor hipótese, dizia um diplomata estrangeiro, todos teriam de reaprender a pescar; na pior, o país se tornaria um pária do sistema internacional e voltaria à década de 30 do século anterior.

Foi em final de outubro que começaram as manifestações, sempre aos sábados. No início de novembro, um rapaz de 22 anos escalou o prédio do Parlamento, chegou ao teto, arrastou-se até o mastro e içou lá no alto a bandeira de uma rede popular de supermercados, cujo símbolo era um porquinho. Todos compreenderam: o país estava à venda – e era barato.

Militância

Haukur Hilmarsson, ativista desde a adolescência, militava num grupo ambiental de tendência anarquista. Já fora condenado por uma ação contra uma usina de alumínio e sentenciado a quatro dias de detenção – cumpriria a pena quando o xadrez vagasse. Passadas duas semanas da ação do mastro, ele acompanhava uma excursão do colégio ao Parlamento quando um policial o reconheceu. Como a tensão crescia no país e no dia seguinte, sábado, haveria mais protestos, acharam melhor prendê-lo ali mesmo. Seria um incendiário a menos na praça.

Haukurtem hoje 25 anos. Brinco no nariz e na orelha, o cabelo louro caindo em dreadlocks sobre o rosto, é muito bonito, mas parece não ter consciência disso ou não se importar. O sorriso, matreiro, sugere que não só se orgulha do que fez, mas se diverte com o efeito que suas posições políticas possam causar no interlocutor: "Eu flerto com o primitivismo. Vamos todos nos foder, é questão de tempo. As usinas nucleares entrarão em colapso e o aquecimento global destruirá o planeta." Com voz delicada, torce pelo apocalipse – "Quanto antes, melhor" –, pois nas catástrofes o Estado se desfaz.

Na Islândia, presos sem periculosidade têm direito a uma hora de passeio fora da cadeia. No sábado, 22 de novembro, negaram a Haukur seu pedido para sair na hora da manifestação e ele, não tendo mais o que fazer, foi dormir, com a consequência de ter vivido os momentos mais radicais da limitada história insurrecional da Islândia entre os lençóis da prisão. Acordado por um homem que dizia estar lá para pagar sua fiança, recusou. Dar dinheiro para o Estado, jamais.

Libertação

Foi quando lhe informaram que, do lado de fora, uma multidão ameaçava invadir a delegacia para libertá-lo; havia o risco de alguém se ferir. Haukur pediu um telefone e ligou para a mãe. Eva Hauksdóttir, militante como o filho, estava no hospital tratando dos olhos atingidos por gás de pimenta. Ela o aconselhou a aceitar, pois muita gente estava se arriscando por ele. Minutos depois, encapuzado, só com olhos à vista, Haukur era acolhido em triunfo na porta da delegacia, aos gritos de que, agora, aquela era uma nação de franceses insurretos.

Em novembro de 2011, sentado ao lado da mãe num café, Haukur não esconde o desprezo pelos acontecimentos daquele dia. "Não sou grande admirador do fetiche de fazer coisas cool, por isso usei a máscara. Todo mundo deu importância ao meu papel e ninguém entendeu nada. Prefiro ser cidadão de um supermercado barato do que desse Estado fascista", diz, com aprovação da mãe, para quem o supermercado tem ao menos a virtude de explicitar a que veio.

O governo responsável pela desregulamentação radical da economia ainda levaria dois meses para cair, mas para muitos a tomada da delegacia foi o ponto de inflexão, quando os modernos sans-culottes do Atlântico Norte se deram conta da própria força. Que este rapaz anarquista só tenha aceitado a liberdade depois de se aconselhar com a mãe é uma doce nota de pé de página sobre os modos suaves da Islândia, um país onde até carbonários ouvem os pais.

Sábados Rebeldes

Poucas horas antes de Haukur ser solto, uma estudante de direito subiu no palanque da praça do Parlamento e fez o mais inflamado de todos os discursos daqueles sábados rebeldes. Era a primeira vez que Katrín Oddsdóttir sentia ódio. "Isso nunca tinha me acontecido", relembrou num fim de tarde de novembro passado. "Mas, quando peguei o microfone, eu vi o rosto dos velhos e era muito triste." De frente para o Parlamento, Katrín ergueu o dedo acusatório na direção dos políticos que não podia ver: se em uma semana o governo não renunciasse, haveria uma revolução no país. De um prédio vizinho, rolou até o chão uma faixa em que um enorme lobo chamado FMI devorava o país. No gradil do Parlamento, amarraram uma placa de VENDE-SE carimbada com as palavras Vendido: 2,2 bilhões de dólares – o valor do pacote do FMI.

Ah, o FMI...

O outono e o inverno islandês de 2008 estão repletos de ironias. Uma delas é o fato de um jovem radical que despreza todos os governos constituídos – à direita ou à esquerda, sem distinção – ter desempenhado o papel de militante número 1 do movimento pela renovação do processo político na Europa. Outra é que coube a um governo de esquerda implementar o primeiro programa do FMI num país do Primeiro Mundo desde a década de 70 – e o gabinete que substituiu o de Geir Haardenão só o implementou, como mereceu efusivos elogios. No derradeiro relatório de avaliação do programa, publicado pelo Fundo em agosto de 2011, lê-se: "Exemplar."

"Antes de virar governo, ele provavelmente dizia: 'Fuck the IMF!'", gargalha Katrín. Ele é o atual ministro da Economia, Steingrímur J. Sigfússon.

Em novembro de 2008, Steingrímur era o líder da Esquerda Verde, o maior partido de oposição a Haarde. Ia trabalhar de meia e sandália, provavelmente com dois propósitos: oferecer conforto aos pés e afirmar que, na melhor tradição dos anos 60, continuava a ser um espírito livre.

Em novembro de 2011, o ministro Steingrímur, agora de terno e sapatos comportados, defendeu sua atual posição: "Como muitos da esquerda, fui crítico do histórico do Fundo e não mudei de opinião. Teria preferido que a Islândia não se visse em situação de precisar do FMI, mas não havia outro jeito. Quando assumimos, eles já estavam aqui. Sem o Fundo, não voltaríamos a ter crédito para importar a comida e o petróleo de que precisávamos, e não teria sido possível estabilizar a economia."

Tamanho realismo causa perplexidade a uns e repulsa a outros. "O FMI jamais escondeu seus propósitos", rosna Kári Stefánsson, fundador da deCODE, uma empresa islandesa de biogenética. "O papel deles não é reconstruir a economia de países em dificuldade. É lutar para que as consequências internacionais de uma crise sejam as menores possíveis. Não critico o FMI por fazer seu trabalho. Critico o governo por ser tão subserviente ao FMI."

Thórdur Jónasson, o consultor internacional, está entre os perplexos. "Este é o primeiro governo de esquerda quimicamente puro da história da Islândia e eles colaboram com o FMI!", espanta-se.

Traição

"Traição!", sentencia Kári. Em 2008, no mais fundo da crise, sentado na mesma sala que continua a ocupar no último andar da deCODE, ele era das poucas vozes otimistas. Lamentava, sim, que a sua Islândia "das sagas e dos poetas" tivesse se transformado num país de especuladores – "eram vulgares e desinteressantes" –, mas, "agora que eles se foram", dizia, "nós nos ajudaremos e sairemos dessa situação como um povo melhor".

Professor de medicina em Harvard, Kári Stefánsson aproximara-se em meados da década de 90 do então primeiro-ministro Davíd Oddsson–arquiteto da liberalização sem peiasda economia, admirador de Milton Friedman e Margaret Thatcher – e o convencera a autorizar a fundação de uma empresa para explorar o extraordinário patrimônio genético da Islândia, um país onde todos são de alguma forma aparentados. Graças a essa herança comum, seria possível rastrear doenças ao longo de gerações e identificar eventuais causas genéticas. Com o patrocínio de Davíd Oddsson, foi promulgada uma lei que, em essência, privatizava os genomas humanos dos islandeses.

A empresa lançou ações na Bolsa de Nova York, e o governo, batendo o bumbo do patriotismo, estimulou a população a investir. Apesar do indiscutível sucesso científico – cerca de 70% das descobertas recentes que relacionam uma mutação genética a determinada enfermidade seriam feitas nos laboratórios comandados por Kári –, a empresa não foi capaz de gerar lucros. Milhares de islandeses viram suas ações virar pó.

Quebrando Promessas

O otimismo que Kári ventilara em 2008 deu lugar ao niilismo de 2011. Movendo-se hieraticamente, cruzou em absoluto silêncio a sala de espera onde o aguardava o entrevistador. Com seu mais de 1,90 metro, andava como uma estátua em seu pedestal, se as estátuas andassem. Minutos depois, ressurgia para buscar café e avaliar, com os olhos, o primeiro compromisso do dia: "Nada mais irritante do que um jornalista brasileiro a essa hora da manhã..." Era excelente teatro.

"O.k., esses três últimos anos provaram que eu estava errado. Está bem assim?", perguntou, irritado. "Se tivéssemos um governo conservador comprometido com a cartilha do liberalismo, eu entenderia as políticas que vêm sendo implementadas. Mas este era para ser um governo socialista... Eles pavimentaram o caminho da recuperação nas costas dos que não têm nada, tirando dinheiro da rede de proteção social. É um governo criminoso porque quebrou todas as promessas que fez."

Na mesma semana em que a Islândia anunciou que não socorreria os bancos, o governo da Irlanda se trancou numa sala para decidir como enfrentar a crise financeira de lá. Parecia um jogo de espelhos: a Islândia tinha três grandes bancos, a Irlanda também; a Islândia era ameaçada por uma corrida bancária, a Irlanda também; os credores internacionais haviam fechado a torneira para a Islândia, e para a Irlanda também.

Avaliação Suspeita

O governo irlandês começou a se aconselhar aqui e acolá. Numa passagem que decerto entrará para os anais da parvoíce universal, o Ministério das Finanças encomendou ao banco americano Merrill Lynch um relatório sobre a saúde do sistema bancário do país. A ninguém ocorreu que o fato de a empresa ter como clientes dois dos três bancos irlandeses poderia, quem sabe, influenciar o diagnóstico. Com confiança de beata em padre confessor, o governo irlandês acreditou na avaliação de que os bancos eram rentáveis e bem capitalizados.

Segundo o jornalista Michael Lewis, autor de Bumerangue: Uma Viagem pela Economia do Novo Terceiro Mundo, foi com essa convicção que se sentaram à mesa o primeiro-ministro e seus conselheiros na noite de 2 de outubro de 2008. Uma corrida bancária punha em risco os bancos e ninguém sabia se dali a 24 horas continuariam a existir. Nessa situação de fato desesperadora, o governo irlandês tomou uma decisão desesperada e agiu para restabelecer a confiança.

Um funcionário do Banco Central foi despachado para ir à tevê explicar a solução encontrada. A este senhor, podem-se imputar muitas coisas – a timidez, o ar de coadjuvante vocacional, o bigodinho –, mas ninguém lhe negará o dom de ser sincero. Numa voz fininha, ele disse: "O contribuinte garantirá os bancos."

Zig.

A Irlanda acabara de decretar que qualquer empréstimo a uma instituição financeira nacional pública ou privada era empréstimo ao estado irlandês. Tal garantia, supunha-se, jamais seria convertida em moeda sonante, uma vez que a mera afirmação de sua existência restabeleceria a confiança no sistema. A hipótese fracassou. O país assumiu uma dívida de 85 bilhões de dólares a seus credores – cerca de 40% do PIB –, valor que terá de ser recuperado à base de um programa brutal que inclui desemprego e corte de salário.

"Nossa situação era até mais crítica do que a da Irlanda", diz Jón Steinsson, de Columbia, "mas eles foram convencidos de que os bancos eram sólidos e cometeram o erro fatal de garantir tudo. Historicamente, em situações assim, os governos costumam pensar o seguinte: 'Se eu gastar só mais um pouquinho, salvo tudo.' E de pouquinho em pouquinho se chega ao abismo." Há meses, desesperados, os bancos islandeses vinham recebendo empréstimos do Banco Central para honrar os seus compromissos internacionais. "Na semana em que nós quebramos, os bancos continuavam a nos pedir linhas de crédito. Tínhamos muito dinheiro para gastar. Poderíamos ter queimado de 50 a 100% do PIB para tentar salvá-los – e de trás para a frente é claríssimo: teria ido tudo pelo ralo. Ainda assim, há quem diga que nossa única opção era deixar o sistema ruir. Olhe, eu estava lá e posso garantir que a impressão não era essa. Nós desistimos de ajudá-los três dias antes do ponto em que os outros países costumam jogar a toalha, e isso nos poupou uma quantidade enorme de dinheiro."

Agenda Social

Esses três dias permitiram resguardar a parcela mais exposta da população islandesa. "Sim, a maioria dos cortes do programa de ajuste recaiu sobre a agenda social – saúde, educação, seguridade", explica Jón. "Acontece que nós tínhamos uma boa margem ao entrar na crise. O governo sempre funcionou no azul" – fato que desafia o argumento de que o contrato social nórdico seja insustentável –, "e o caixa estava abastecido com o dinheiro que não gastamos para tentar salvar os bancos. Isso foi decisivo para proteger o sistema social. Não tivemos de cortar tão fundo como outros países."

A inflação provocada pela desvalorização da coroa islandesa comeu os salários mais altos, enquanto os mais baixos foram parcialmente protegidos por reajustes. O sistema tributário, regressivo no governo conservador, tornou-se fortemente progressivo, com aumento de impostos apenas para as empresas e para os 40% mais ricos. Em 2009, no momento mais agudo da crise, o governo chegou a acelerar o repasse para os mais afetados. "Aumentar gastos sociais no pico de uma crise não é a medida mais óbvia do mundo", diz o ministro Steingrímur. "O consenso hoje é de que o programa do FMI para a Islândia foi extremamente heterodoxo."

Heterodoxo e duríssimo: o governo cortou o equivalente a 10% do PIB, o que corresponde ao valor que teve de gastar para reerguer o sistema financeiro local. É um dos maiores ajustes de que se tem notícia.

Único

Stefán Ólafsson, sociólogo da Universidade da Islândia, afirma que, de tão singular, o ajuste islandês pertence a uma categoria só sua. Ao analisar os efeitos sociais do programa de austeridade, ele constatou, em síntese, uma reversão da tendência à desigualdade que vinha caracterizando os anos de liberalização econômica. O índice de Gini, que mede a distância entre os mais ricos e os mais pobres, mostra um país com menos disparidades em 2010 do que em 2007. Crises financeiras afetam primeiro aqueles que especulam, o topo da pirâmide, lembra o economista Jón Steinsson, sendo natural que, num primeiro momento, os mais ricos percam mais. No entanto, ele atesta que, de fato, as políticas adotadas pelo governo mitigaram a desigualdade.

O país empobreceu – a economia tem hoje o tamanho de 2004 –, mas chega a 2012 mais justo e, por isso, com mais chances de voltar a crescer. O próprio FMI sublinha esse aspecto. "Qualquer país pode experimentar pequenos surtos de crescimento, às vezes até intensos, mas eles não duram muito", disse Nemat Shafik, diretora do Fundo, numa conferência promovida em Reykjavík pelo FMI e o BC islandês em outubro passado. "Os dados mostram que os países que conseguem crescer de maneira constante e duradoura geralmente têm distribuição de renda mais equitativa."

Desemprego

O desemprego hoje na Islândia é de 7,3%, metade do da Irlanda, um terço do da Espanha. Projeções indicam um crescimento de 2,5% em 2012. A Europa do euro, segundo a revista The Economist, deverá sofrer uma retração. (A Irlanda permanecerá estacionária.)

O custo para a reputação islandesa, tão alardeado à época da decisão de não socorrer os bancos, aparentemente não se materializou, a julgar pelo único termômetro que o mercado respeita. Em junho do ano passado, pela primeira vez desde a crise, o país testou com a pontinha do pé as águas do sistema financeiro. Estava gostosa. A Islândia vendeu 1 bilhão de dólares em títulos de cinco anos, pagando abaixo de 5%. O mundo cobra 15% a mais da Irlanda, cujos bons modos receberam nota 10 do sistema financeiro internacional.

Não significa que a Islândia esteja com a casa arrumada. Num dos efeitos mais deletérios das crises, os ativos foram levados a um rearranjo caótico. Apanhadas no contrapé, endividadas, boa parte das empresas islandesas foi encampada pelos credores. Hoje, 60% delas pertencem aos bancos. É impressionante, mas há mais.

Dos três bancos nacionalizados, o Estado manteve o controle de apenas um, o Landsbanki [Banco Nacional]. Numa clássica conversão de dívida em participação, os outros dois foram repassados a grandes credores internacionais, aos quais não interessava gastar nem tempo nem dinheiro para reerguer instituições que acabavam de lhes causar prejuízos desastrosos. Semmuito choro, preferiram vendê-las a hedge funds americanos, aceitando 2 ou 3 centavos pelo valor de face de 1 dólar.

Fundos

Passados três anos da crise, mais da metade do sistema financeiro islandês pertence a fundos cuja prioridade é recuperar, em curto prazo, o capital de oportunidade que puseram ali. Não são parceiros da retomada, não investirão no país. Pior: como controlam parte significativa das empresas e ninguém sabe o que pretendem fazer com elas, nada se move. Se for mais lucrativo, elas serão vendidas aos pedaços a quem oferecer um preço camarada. A esses fundos se dá o nome de vulture capitalists, operadores especializados no desmembramento de ativos alquebrados.

A Islândia não deu o calote. Ao contrário da Grécia, por exemplo, cujas dívidas são essencialmente públicas – foi o Estado que tomou dinheiro emprestado –, o governo islandês sempre zelou pelas suas contas. As dívidas foram contraídas por entidades privadas e quem emprestou assumiu o risco de fazer mau negócio. Perderam bancos internacionais, a maioria deles europeus, dos quais metade alemães. Extintas as esperanças de reaver os empréstimos à trinca islandesa, eles pegaram a caneta vermelha e deram por perdidos 63 bilhões de dólares.
No encerramento da conferência de Reykjavík, Martin Wolf, o mais proeminente colunista do Financial Times, resumiu o que acabara de testemunhar: "Passei anos cobrindo países em crise. A grande pergunta que aparece nessas horas, e que gera debates furiosos, é uma só: quem arcará com os custos? Na maioria absoluta das sociedades, as perdas acabam sendo pagas por gente relativamente pobre. Se isso não aconteceu aqui, então estamos diante de um milagre."

Turbulência

Em 31 de agosto de 2011, 33 meses depois do acordo, o FMI apertou a mão da Islândia – "Foi um prazer" – e voltou para casa. Turbulências, apenas uma. O ministro Steingrímur acredita que, não fosse por ela, o país teria saído mais cedo da crise. Ele se refere à turbulência como "essa coisa infeliz do Icesave".

Vários adjetivos seriam mais apropriados: rumoroso, afamado, façanhudo, memorável. O que o governo julga infeliz é visto, por boa parte dos islandeses, como o grande momento de afirmação democrática da nação. É essencialmente por esse episódio que se grita "Todos somos Islândia" nas praças espanholas.

O Icesave era um pequeno banco on-line aberto pelo Landsbanki, um dos membros da tríade islandesa. Sua especialidade era captar fora do país, principalmente na Grã-Bretanha e na Holanda. Donas de casa, assalariados, organizações filantrópicas e universidades depositaram ali parte de sua poupança, atraídos pelos juros mais generosos. Quando o sistema ruiu, cerca de 5 bilhões de dólares em depósitos desapareceram.

Divisão de bancos

A Lei de Emergência sancionada naquele sombrio 6 de outubro determinava que cada um dos três bancos fosse dividido em dois: um banco doméstico – responsável pelos depósitos em coroas – e um estrangeiro — responsável por todo o passivo em moeda forte. O governo passaria a administrar o banco doméstico, garantindo os correntistas; o estrangeiro, não encampado pelo Estado, seria liquidado. O governo britânico berrou: estavam discriminando seus cidadãos. Enquanto os islandeses tinham acesso à conta bancária, o pobre carteiro aposentado de Birmingham, que depositara suas economias, em libras, num banco eletrônico com sede na Islândia, ficava a ver navios.

Com a nacionalização parcial do Landsbanki, foi o caso de perguntar: Seria o Estado islandês responsável pelo carteiro de Birmingham? As autoridades julgaram que não. No momento da quebra, tanto o Landsbanki como o fundo garantidor da Islândia constituíam entidades privadas, logo, não havia por que socializar as perdas. Credores internacionais – sobre os quais os correntistas continuariam a ter prioridade – seriam ressarcidos com os ativos da massa falida.

Imediatamente, entraram em ação os mecanismos usuais da geopolítica. A Islândia precisava desesperadamente de dinheiro para estabilizar sua economia. O FMI assinara um protocolo de cooperação no valor de 2,2 bilhões de dólares e já pagara a primeira tranche. Faltavam todas as outras. Era simples: como membros do FMI, Grã-Bretanha e Holanda bloqueariam a transferência dos recursos.

Depois de 2017

Pressionado, o governo propôs um acordo: começaria a saldar a dívida a partir de 2017. Em 30 de dezembro de 2009, o Parlamento aprovou a lei que dispunha sobre o pagamento. Para entrar em vigor, bastava agora a assinatura do presidente da Islândia. Sendo o cargo essencialmente simbólico, tratava-se de mero protocolo. Deixou de ser quando o presidente Ólafur Ragnar Grímsson alegou precisar de tempo para refletir. A Constituição islandesa estabelece catorze dias para a assinatura da Presidência, a partir da sanção parlamentar; esgotado esse prazo, convoca-se automaticamente um referendo para que a matéria seja decidida pela população.

O ativismo político de 2008, àquela altura esmorecido, ganhava ali uma segunda vida. "A princípio, não tinha nenhuma relação com a dívida", esclarece Ólafur Elíasson, um dos criadores do InDefence, o grupo de pressão que viria a liderar os novos protestos. Músico e professor de piano, Ólafur estava cuidando da vida quando o país quebrou. Não tinha dívidas, e de súbito se viu tachado de terrorista por Gordon Brown. Convocou um grupo de amigos, e em pouco tempo circulava pela internet uma campanha em que velhinhas, crianças, moças, famílias, bebês e até cachorros islandeses apareciam ao lado de um recado: Eu não sou terrorista, senhor Brown.

Novos Protestos

Ólafur voltou à ativa ao saber do acordo em torno do Icesave, cujos detalhes os governos da Islândia, da Grã-Bretanha e da Holanda mantinham entre quatro paredes. O documento foi vazado para Ólafur. Ele o mostrou a um advogado que, depois de estudá-lo por uma noite, não teve nada mais brando a dizer senão que era preciso denunciar o governo por traição.

Durante meses, membros do InDefence tentaram convencer os parlamentares a rejeitar a proposta. Não conseguindo, resolveram acionar o dispositivo constitucional que previa veto presidencial com subsequente referendo. Desde a independência do país, o artigo 26 da Constituição jamais fora levado a efeito. Ólafur e sua turma pediram uma audiência com o presidente em 2 de janeiro de 2010, três dias depois de a lei ser sancionada.

Era um sábado. Às onze da manhã, algumas centenas de pessoas apareceram diante da residência presidencial, a trinta minutos de Reykjavík. Da neve, surgiu o núcleo duro do movimento, carregando uma pilha de páginas com 56 mil assinaturas contra o acordo, um quarto do eleitorado do país. Em semicírculo, um coral prorrompeu num canto patriótico. Era a senha para que dois monomotores decolassem de um aeroporto vizinho e viessem registrar o momento mais espetacular do dia.

Nação Insurreta

À roda da casa, dezenas de pessoas ergueram o braço, cada uma delas segurando no alto um sinalizador vermelho. "Nós somos um país de pescadores", explica Ólafur. "Aqui todos compreendem o alerta de perigo no mar." O céu pareceu arder. A fumaça avançou sobre a casa, fazendo-a desaparecer detrás de uma espessa cortina vermelha. Foi essa a imagem estampada no dia seguinte na primeira página de todos os jornais. Até mesmo um paraguaio destituído de mar entenderia que ali se sinalizava urgência.

Logo depois, o presidente abriu a porta. Oito delegados do InDefence foram conduzidos a uma longa mesa. Sentaram-se de um lado, o presidente do outro. Por quase duas horas, argumentaram. O presidente escutou e pouco disse. "Honestamente, eu não tinha esperança", diria Ólafur. Três dias depois, em 5 de janeiro, o presidente anunciou que não assinaria.

O referendo se realizou dois meses depois, em 6 de março de 2010. O acordo foi rejeitado por 93% dos eleitores. Menos de 2% concordaram com o pagamento. Já seria o bastante para elevar a Islândia ao panteão das nações insurretas, mas havia mais.

Alarmado com a reação dos dois países credores – "Inaceitável", disse o ministro das Finanças holandês; "A Islândia acaba de declarar que não pertence mais ao sistema financeiro internacional", aduziu um alto funcionário britânico –, o governo islandês se pôs a negociar discretamente um novo acordo, em termos mais favoráveis ao país.

Levou-o ao Parlamento no início de 2011. Nesse momento, já se sabia que o valor da massa falida dos bancos era bem mais substancial do que se imaginara – a dívida poderia ser paga sem grande sacrifício do Tesouro. A maioria parlamentar – favorável ao novo acordo – parecia refletir o sentimento do país. Ainda assim, uma vez mais, o presidente se negou a assinar. Dias antes do segundo referendo, em abril de 2011, pesquisas indicavam que a proposta seria aprovada. Uma reversão de última hora a derrotou.

Pagar ou não pagar?

Não espanta que 60% dos eleitores tenham votado não. Surpreendente é que os outros 40% tenham dito que era hora de pagar. "Adotar o partido de não pagar é muito fácil", diz Gudmundur Jónsson, professor de história na Universidade da Islândia. "A escolha do presidente foi interpretar o humor da nação dizendo que havia uma cisão entre o Parlamento e a sociedade. Não havia. Uns dias antes do segundo referendo, a maioria dos islandeses era favorável ao pagamento. Ele cruzou uma fronteira constitucional ao não respeitar o que o Parlamento havia decidido." A contundência da afirmação contrasta com a voz suave: "Pegue um táxi e pergunte ao motorista: 'Quer pagar uma dívida para estrangeiros?' É ridículo submeter uma pergunta dessas a referendo. O presidente é um demagogo."

"Em 2010, foi como dizer: 'Danem-se os estrangeiros, vamos salvar os islandeses'", resume Ísi, o produtor cultural. Ele votou não no primeiro referendo e, acompanhando os 40%, sim no segundo.

O jornalista Eiríkur Gudmundsson trabalha na Rádio Nacional da Islândia. Durante um bom tempo, foi dos poucos a atacar – com notável virulência – os excessos da liberalização econômica. Em 2011, mudando de alvo, leu no ar um editorial furibundo contra os referendos. "Aquilo foi puro teatro político. O caso Icesave é irrelevante, serviu apenas para desviar a atenção das questões essenciais. Em vez de discutir as razões da quebra ou o colapso do Banco Central, os islandeses ficaram dois anos em cima de uma questiúncula. Não foi à toa que o voto pelo não virou uma bandeira do mesmíssimo governo de direita que causou todo o estrago." Tempos irônicos.

Eiríkur votou sim. Para ele, era simples: "De um lado, os nacionalistas, os capitalistas, a turma da direita, todos dizendo: 'Somos islandeses, não fazemos acordos, não precisamos de ninguém.' Do outro, pessoas dizendo: 'Somos europeus, prejudicamos muita gente, devemos nos responsabilizar.' Eu não quis ficar com a primeira turma."

"Houve um custo associado aos dois referendos", afirma o ministro da Economia Steingrímur. "Cortaram empréstimos à Islândia. Nossa recuperação atrasou", argumenta. "Os números hoje mostram que o custo do segundo acordo vetado pelo presidente seria insignificante. Os ativos recuperados cobrem praticamente tudo. Quero lembrá-lo do seguinte: este caso ainda não acabou. Em função dos referendos, é possível que só termine nos tribunais internacionais. Ainda pode nos custar muito caro."

Ação

Na mitologia da crise islandesa, os referendos representam o momento político por excelência, quando o país, soberano, foi às urnas repudiar o pagamento de uma dívida que não contraíra. Mas, novamente, não se tratava de calote, como até Ólafur, do InDefence, insiste em sublinhar: "Nós jamais dissemos que a dívida deixaria de ser paga. Pedíamos apenas que esperassem até a liquidação do banco." Grã-Bretanha e Holanda – ironia – receberão seu dinheiro.

Como o governo temia, em dezembro passado, a Agência de Fiscalização do Acordo Europeu de Livre Comércio entrou com uma ação contra o Estado islandês por não honrar as contas Icesave.

"Foi daqui que o senhor viu os sinalizadores?" "Sim", respondeu o presidente da Islândia, Ólafur Ragnar, numa sala de sua residência oficial. À beira de um pequeno lago, a casa era uma antiga escola de línguas clássicas. Ali foi feita a primeira tradução da Odisseia para o islandês. O presidente é um homem de 68 anos, muito alto, dotado de cabelos alvíssimos, ornamentais. Veste-se e move-se com a dignidade e a pompa de um velho embaixador cioso de seu papel no mundo.

"Conheço a crítica que me fazem", disse. "Discordo dela não só como presidente da República, mas como cientista político que durante anos lecionou a Constituição islandesa." Em tom professoral – ouvir a própria voz não lhe desagrada –, passa a explicar o que houve na Islândia: "O choque que sofremos mostrou como o sistema financeiro é capaz de ameaçar os fundamentos de uma sociedade democrática e pôr em risco a coesão social. Diante da potencial calamidade, a Islândia tomou algumas decisões. A economia se recuperou mais cedo e melhor do que qualquer pessoa imaginaria. E também a sociedade se recuperou. Por quê?"

O velho cientista político elenca três explicações. Em primeiro lugar, a percepção, logo no início, de que o desafio não era apenas econômico. A crise devia ser compreendida nas suas dimensões políticas, legais e sociais. Foram convocadas novas eleições parlamentares, iniciou-se uma investigação criminal (por ora, uma só pessoa foi punida) e elegeu-se um comitê para propor mudanças na Constituição.

A segunda dimensão da estratégia islandesa foi "contrariar a ortodoxia financeira vigente nas economias ocidentais" e deixar que os bancos quebrassem.

A terceira dimensão é a que chama de "a dimensão democrática". A seu ver, pode-se resumir o caso Icesave como a transformação de uma dívida privada em obrigação soberana do país: "Eu submeti essa decisão ao povo islandês." Decisão difícil? "Sim. Forças poderosas pressionaram para que eu assinasse a lei – não só o governo, mas associações de indústrias, a maioria dos sindicatos, todos preocupados com as repercussões econômicas da recusa. E, claro, todos os governos da Europa foram contra. Para muitos, a Islândia viraria um pária no concerto das nações" – a "Cuba do Norte", alguém disse. O temor do presidente era outro: "O de virarmos o Haiti do Norte." "Demos prova de uma via democrática diferente do que se viu na Grécia, por exemplo, quando os governos europeus se uniram para dizer a eles: 'Não, vocês não farão plebiscito.'"

Niilismo

Oratória à parte, uma razão mais sutil parece amparar o episódio dos referendos. Em menos de uma semana, a crise substituiu o otimismo de uma nação eufórica consigo mesma pelo niilismo de quem enxerga o futuro como fracasso líquido e certo. Se, como sustentam alguns, os referendos mais latiram do que morderam, o ponto-chave talvez tenha sido exatamente o latido. "O país estava em choque", disse o presidente. "Não foi por isso que convoquei o referendo, mas ali, essa é a verdade, os islandeses sentiram que o destino da Islândia estava em poder deles. Ali renasceu a vontade da nação." Rituais de expiação, mesmo se custarem caro, têm sua serventia.

Jón Skafti Gestsson tem 30 anos. Alto, com cavanhaque de boêmio, graduou-se em história e faz mestrado em economia na Universidade da Islândia. Nos anos de bonança, deu aulas de islandês para estrangeiros, mas a crise espantou os alunos. Voltou à universidade nas asas de uma bolsa do governo, o que o ajuda com as contas da família – mulher e filhinha. Jón tem seu apartamento, tem sua rotina. Sabe que o Estado arcará com a escolinha da filha, com eventuais emergências médicas. Tudo parece no lugar, mas não: "Em termos materiais, eu não perdi nada com a crise. O que perdi, o que todo mundo perdeu, foi uma sensação generalizada de confiança. Ninguém confia em mais nada, e isso suga muita energia, te impede de ser feliz. Estamos paralisados."

"Não fazíamos ideia de como os interesses econômicos haviam se imiscuído na esfera política", diz Katrín Oddsdóttir, a jovem advogada que discursou contra o governo naquele sábado de 2008. "Políticos pegavam carona nos jatos dos bilionários. Criaram-se empresas de mídia para defender os interesses dos grandes conglomerados."

Causas da Crise

Em 2010, foi publicado um relatório sobre as causas da crise. Produzido por uma Comissão Especial de Inquérito Parlamentar, o texto em nove tomos causou tanto espanto que foi lido em voz alta, na íntegra e sem interrupção, ao longo de seis dias e seis noites no palco do Teatro Municipal de Reykjavík, com transmissão ao vivo pela internet. Poucos se salvaram. O presidente não foi um deles. Para Katrín, "de herói nacional, ele passou a vilão". Soube-se que, durante os anos de expansão, o velho professor de esquerda se mostrara um entusiasta dos novos capitalistas. "Ele viajava nos aviões particulares, falava maravilhas dos nossos bancos, fazia relação com as sagas e os vikings, dizia que iríamos conquistar o mundo."

O tema recorrente na Islândia, hoje, não é mais a quebra, a derrubada do antigo governo, a eleição do novo, os referendos ou o início da retomada. É a descrença, com seu corolário de desnorteamento. "É tudo um paradoxo", diz Bergsteinn Sigurdsson, repórter do Fréttabladid, jornal de maior circulação do país. "Por exemplo: pela primeira vez, temos um governo de esquerda, e a direita o acusa de estar a serviço do grande capital financeiro." Na véspera, a Standard & Poor's aumentara a nota do país. "Uma das consequências da crise é que a informação perdeu a credibilidade. Antes, nós diríamos: 'Sim, estamos saindo do buraco.' Agora é gritaria geral, todos contra todos, ninguém acredita em nada."

Esquerda-Direita

Kári Stefánsson, da deCODE, um dos descrentes, não vê mais diferença entre esquerda e direita e acha que o colapso confirmou a falência do modelo político tradicional. "Eu acabo de descrever para você a miséria moral do nosso atual governo. Ainda assim, se me perguntassem quem eu poria no lugar deles, não saberia responder."

"Nos Estados contemporâneos, o que acontece no âmbito das instituições, mesmo das mais consolidadas, tornou-se um aspecto quase periférico", diz o presidente da República, no papel de cientista político. A mobilização pelos referendos, a Primavera Árabe, os movimentos de protesto na Europa são, a seu ver, indícios de que as mudanças estão se dando ao largo do sistema, quando não contra ele. "É uma conclusão estarrecedora."

Mais uma vez, foi na Islândia que se viram as primeiras reações a esta brutal falta de fé no processo político. Em maio de 2010, Jón Gnarr foi eleito prefeito de Reykjavík, o segundo posto mais importante da hierarquia política nacional, atrás apenas do cargo de primeiro-ministro. Gnarr não veio ao mundo pelas vias normais: é criação de um satirista. Fazia tanto sucesso no rádio que o criador assumiu oficialmente o nome da criatura e se lançou na política. Ao partido que fundou, deu um nome que tranquilizasse a população. "Se não fosse tão bom", explicou na época, "o meu partido não se chamaria o Melhor Partido, mas o Partido Médio, ou o Pior Partido, e eu nunca militaria num partido desses."

Programa de Governo

O programa de Gnarr ancorava-se numa promessa: quebrar todas as promessas do candidato – dentre as quais, toalhas de graça nas piscinas públicas, transporte gratuito para "estudantes e pobres coitados", um Parlamento sem drogas até 2020 e um urso polar para o zoológico da cidade. Ele expôs com franqueza o cerne de sua motivação: "Preciso garantir um salário fixo para cuidar da minha vida, e também quero ter assessores e ganhar um monte de coisas de graça." Foi o escolhido de mais de um terço dos eleitores de Reykjavík.

"Não sei bem por que as pessoas votaram em mim", disse Gnarr, minutos depois de se filiar a um grupo taoísta, seu compromisso anterior naquela manhã miserável de neve e granizo. "Posso garantir que minha candidatura não nasceu como piada. O Melhor Partido está cheio de gente séria." Para comprovar, observou, sem ironia, que o vice-líder do partido foi um dos fundadores dos Sugarcubes, a banda neopunk que lançou Björk.

Jón Gnarr tem 44 anos, é corpulento e extremamente gentil. Aponta com orgulho uma imagem que, junto à máscara de Darth Vader, decora seu gabinete: a conhecida street art do inglês Banksy na qual um jovem mascarado atira um buquê de flores à guisa de coquetel molotov. "Foi ele que me deu", conta, feliz. Seu pulôver cinza estampado com o símbolo do anarquismo produzia uma dissonância cognitiva com a poltroninha rendada em que se sentou para conversar. "Sempre tive muito interesse em política, mas acho os partidos tradicionais um tédio. Filosoficamente, sou um anarquista."

Alternativa Viável

Considera que, do ponto de vista simbólico, o fato mais relevante de sua eleição foi o que não aconteceu. O Melhor Partido se apresentou como alternativa viável num momento em que as pessoas estavam perplexas e furiosas. Ele usou essa fúria para o bem, garante. Os extremistas de plantão poderiam tê-la usado para o mal. "No norte da Europa, isso já está acontecendo, com a ascensão da extrema-direita."

"A eleição do Gnarr foi um fuck you na cara dos políticos, um atestado da nossa descrença generalizada", diz o jornalista Kolbeinn Proppé. "Mas bastou pisar na prefeitura para ele começar a agir de maneira convencional. Você se apresenta como o cara que vai mudar a política, forma o gabinete com músicos, cineastas e poetas, e aí, no primeiro dia, jogam na tua mesa os três calhamaços do Orçamento."
Com candura desconcertante, Jón Gnarr, autodeclarado libertário e surrealista, menciona como sua maior realização a reestruturação financeira da empresa municipal de eletricidade. Depois de um mês atracado a planilhas – "Mas que merda estou fazendo aqui?" –,montou uma complexa engenharia para capitalizar a empresa oferecendo como garantia títulos do próprio município – ou algo do gênero.

"Aqui, depois de 2008, governar virou sinônimo de controlar o estrago. Ninguém mais se dá ao luxo de realizar grandes coisas", resume Proppé. Reconhecendo essas limitações, os eleitores têm em alta estima o governo de Gnarr. Identificam nele um administrador dedicado e sincero. O prefeito elogia a Lei de Responsabilidade Fiscal, recentemente aprovada pelo Parlamento, e não está bem certo, mas desconfia que o FMI seja em parte o responsável pela recuperação. É Kropotkin no colégio Sion.

Ilusões Perdidas

Ao longo desses últimos três anos, a Islândia perdeu as ilusões que tinha a respeito do funcionamento do mundo, e é por isso que avançou tanto, concluiu o economista Simon Johnson, ao encerrar sua participação na conferência de Reykjavík. "O mundo não é amigo de ninguém, o sistema financeiro internacional não é amigo de ninguém" – essas seriam as lições que o país aprendeu.

"Um conto de fadas", rebateu Gylfi Zoëga, professor de economia na Universidade da Islândia, no mesmo seminário. "Criou-se o mito de que agimos com independência, com valentia. Os contribuintes foram ouvidos, deixamos os bancos quebrar, protegemos nossos correntistas e decidimos não nos responsabilizar pelas dívidas estrangeiras. Ora, nós não protegemos nada. Não salvamos os bancos porque não tínhamos o euro. Foi sorte."

Sorte de ser um país pequeno, com capacidade quase nula de desestabilizar a economia mundial. Caso Itália, Espanha ou mesmo Grécia adotassem o modelo islandês, é provável que a economiados três não suportasse a pressão. Sorte de não ter o euro e, assim, poder desvalorizar a moeda. "A coroa é boa num ano de crise", avalia Jón Steinsson, de Columbia, "mas desastrosa, pelos próprios limites, em qualquer outro momento em que o país não esteja enfrentando uma catástrofe." Sorte, sobretudo, na excepcionalidade de sua loucura. "Se é para ter uma crise bancária, então que os bancos enlouqueçam de vez, para não haver mais nenhuma ilusão quanto à possibilidade de salvá-los", na síntese de Martin Wolf, do Financial Times.

Redefinição e Reformismo

Heroísmo por falta de alternativa deslustra um pouco o brilho do gesto. Katrín Oddsdóttir, que, desde o famoso discurso na praça do Parlamento, empenha-se em redefinir a Islândia – é uma das 25 pessoas eleitas para propor uma nova Constituição –, teria dificuldade em transmitir algum entusiasmo aos jovens espanhóis. "A raiva passou, o que é bom. Impossível viver em estado de fúria permanente. Mas até agora nenhum grande responsável foi levado à Justiça, ou seja, o sistema continua falhando. Não vejo nenhuma revolução silenciosa por aqui. Quando meus amigos estrangeiros me perguntam, eu respondo: 'Revolução? Que revolução?'"

"Eles estão passando da insurreição para a reforma", lamenta Haukur, o anarquista, referindo-se a seus compatriotas.

Ou nem isso. Aos poucos, segundo Katrín, a população vai voltando no tempo. "Isso é tão 2007", eles dizem, referindo-se a qualquer delito de luxo, dos menores (um vinho caro) aos grandes (uma Mercedes esporte). Nos primeiros anos pós-crise, o ativismo político revitalizou uma população que se deixara entorpecer pelo consumo, acredita o professor Gudmundur. Agora, a desesperança parece empurrar parte dos islandeses de volta à passividade das compras. "Frankenstein está reaprendendo a andar", diz Katrín.

Occupy

Era sábado à noite e ventava. Também chovia e logo viria o granizo. A praça estava quieta. No gramado em frente ao Parlamento, estavam armadas duas tendas de protesto. Nada a ver com as manifestações de 2008, apenas a emulação do movimento Occupy Wall Street. Na barraca maior, à luz de duas lanternas a vela, dois grupos conversavam em voz baixa. No primeiro, gente mais velha, na meia-idade, levemente alcoolizada. No segundo, uma garotada silenciosa, fumando cigarros artesanais e passando uma garrafa de vinho de mão em mão. Iluminados por quase nada, lembravam Caravaggio.

Einar e Svavar têm 19 anos. Não fazem parte do protesto. Entraram na tenda só para conversar, porque parecia um lugar tranquilo. "Onde estão os manifestantes?" "Estão em falta", responde Einar.

Svavar fala com gestos largos, movendo os braços lentamente, como algas embaixo d'água. É um menino doce. Vem de uma família de pescadores desde sete gerações, mas não pode pescar. A privatização do regime de cotas, uma das primeiras medidas de Davíd Oddsson, concentrou as empresas de pesca e excluiu os barcos autônomos. "Virei guia turístico. Mostro o mar, as belezas. De vez em quando saio nos barcos como cozinheiro. É muito triste." Não participou das manifestações de 2008. "Aquele pessoal só protestava porque tinha perdido dinheiro."

Fora UE

A Islândia na qual Svavar gostaria de viver é feita de terra, mar e pouca coisa mais. "Eu quero me retirar da sociedade, não depender de nada nem de ninguém." É o sonho regressista de uma Islândia autossuficiente, de homens livres que não respondem a nenhum governo central. Svavar abomina a União Europeia, à qual o país pensa em se juntar. "Se não quero depender de uma decisão de Reykjavík, que dirá de Bruxelas." É o mesmo argumento de Davíd Oddsson, o líder de direita a que Svavar presume se opor. "O diabo tem boas ideias", responde.
A natureza que ele tanto ama também sofre e caminha para a dissolução. "Se você quiser falar de aquecimento global, eu posso passar a noite inteira aqui..." Rejeita a ideia de crescimento econômico – "significa apenas mais coisas"–, pois julga que o mundo chegou ao limite. Svavar pensa em ir embora.Lamenta com muita tristeza que a Islândia já não lhe ofereça oportunidades. Quer juntar dinheiro para pagar um curso de botânica em alguma parte do mundo, de preferência numa floresta tropical.

Einar, ao contrário de Svavar, participou ativamente dos protestos de 2008. Invadiu a delegacia para soltar Haukur, a quem atribui, em parte, o despertar da sua própria consciência política. "Foi com o colapso que eu e meus amigos começamos a pensar como filósofos de verdade." Ele diz isso de uma maneira muito bonita, sincera. "Foram dias lindos...", rememora, como se não fosse um adolescente de 19 anos. "Hoje, tudo é pura apatia."

Nova Conjuntura

Alguns colegas talvez o achem petulante, com sua figura de um menino inglês privilegiado do entreguerras, bochechas vermelhas, nariz afilado, traços delicados, boné de tweed. É extraordinariamente articulado e se expressa num inglês impecável, cheio de maneirismos britânicos antiquados. Num filme, estaria a caminho de Oxford com versos de Shelley nos lábios. A realidade é bem outra. Einar abandonou a escola. Depois, decidiu voltar, e agora pensa em largar de novo. Quer ser cineasta.

Ísi, o produtor cultural, havia dito: "Por um lado, não descemos ao fundo do poço – ninguém passou fome, continuamos a ser um dos países no topo do mundo –, mas, por outro, nada de muito importante acontecerá por aqui durante muito, muito tempo. O que temos agora é isso, e pronto."

Isso é muito pouco para Einar, e também para seu amigo Svavar. Estão ambos desencantados, mas por razões opostas: Svavar teme o tumulto do futuro, e Einar, o tédio.

À medida que o tempo passa, mesmo o referendo vai perdendo suas tintas heroicas. Tudo parece se reduzir a um pragmatismo exasperado. "Os estrangeiros depositaram o dinheiro nos bancos islandeses e agora querem de volta." Einar consegue compreender isso. "Mas eu não quero viver feito um cão porque um banqueiro islandês viveu uma vida louca. Então, fuck it: não pago." Svavar acha que Einar se tornou um pessimista: "O que ele queria é aperfeiçoar o sistema, e não o pôr abaixo, mas chegou à conclusão de que isso é impossível." É um eco do suspiro de Eiríkur Gudmundsson, o jornalista da Rádio Nacional: "Capitalismo: nada além no horizonte."

Riscos

São riscos que a Islândia corre. De um lado, o nacionalismo, com sua defesa do país profundo, de matriz nostálgica, antimoderna e isolacionista; do outro, o desengajamento político, o desdém. Num caso, o país entregue aos extremistas que melhor souberem modular o discurso; no outro, aos oportunistas que ocupam o vácuo deixado pelo desinteresse.

No centro, todos aqueles que, embora cansados, ainda acreditam no processo democrático. "E olhe", diz Katrín, do comitê da reforma constitucional, "a gente agora está precisando é de um pouco de confiança e de amor. Pode parecer cafona, mas esse lugar nunca foi muito ensolarado, então um pouquinho de amor faz falta. Senão nós vamos ser sempre essa ilha árida perdida no Atlântico Norte."

Thór Jóhannesson descobriu sua santa chama insubmissa no episódio da tomada da delegacia. Afora o nascimento do filho, foi o momento mais intenso dos seus 36 anos de vida. Foi ele que perguntou pelas pedras e inflamou a multidão, ao dizer que libertar o prisioneiro significava derrubar o governo, e que, ao ver Haukur livre, cerrou os punhos e gritou que agora a Islândia era a França da Marselhesa.

Situação Precária

Na época, estava concluindo a universidade e em breve faria o concurso para o magistério nacional. Seu sonho era lecionar literatura no ensino médio. Chegou a ser contratado em regime de experiência, mas o Estado o incluiu na lista de demissões do programa de austeridade. De lá para cá, vive do seguro-desemprego. Fez pequenos papéis em alguns filmes e pensa em mudar de carreira, mas no momento está quebrado. Mora de favor na casa do irmão, numa cidade vizinha a Reykjavík.

O ardor revolucionário se extinguiu. Thórvotou no Melhor Partido para a prefeitura de Reykjavík, mas anularia o voto em eleições nacionais. A esquerda que está no poder é um desapontamento. No máximo, melhor do que o governo anterior. "Entre Satã e o Diabo, você escolhe Satã, que é o melhor. Só que é o Diabo quem manda." É uma variante de um tema recorrente no país: mudaram as pessoas, a ordem permaneceu intacta. Thór se sente congelado, sem poder se mover. Sonha com uma Islândia de trinta anos atrás. "O que existe é a desesperança. Perdi completamente a fé na democracia. Está provado que ela é tão perniciosa quanto a ditadura. Então, se existe uma saída, eu não conheço. Se soubesse qual é a terceira via, eu seria o rei do mundo."

Situação do movimento sindical em números


O Brasil conta com 9,8 mil sindicatos (372 mais que em 2010) e 6,8 milhões de trabalhadores sindicalizados, 588 mil a mais que o registrado há dois anos. O universo das centrais é um pouco menor, uma vez que 2,6 mil sindicatos não são filiados a uma central, e, por extensão, os 947 mil trabalhadores filiados a eles também não.

No ano passado, a CUT registrou 141 sindicatos a mais no Ministério do Trabalho, e essas entidades contam com 101,3 mil trabalhadores sindicalizados. Ao todo, a CUT conta agora com 2,1 mil sindicatos registrados com 2,4 milhões de sócios - segundo o índice de representatividade criado pelo governo, que cruza o número de sindicatos filiados e dos trabalhadores a eles associados, a CUT representa 36,5% do movimento sindical. A parcela, ainda majoritária, caiu. Um ano atrás, a CUT representava 38,3%.

O primeiro ano do governo Dilma Rousseff foi de crescimento para as demais centrais. A Força Sindical, segunda maior do país, chegou a 1,7 mil sindicatos no ano passado, e 982 mil sócios - 14,4% de representatividade. O aumento, de apenas 0,3%, foi um pouco inferior ao registrado pela Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), braço sindical do PC do B, que fechou 2011 com 553 sindicatos e 574,9 mil sócios.

Os maiores saltos foram da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e da Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST), de 2,4 pontos percentuais e 1,3 ponto percentual, respectivamente. Em 2011, a UGT, a terceira maior central do país, entrou no radar político partidário, depois que seu presidente, Ricardo Patah, se filiou ao PSD, criado pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Ontem, Patah fundou a ala sindical do partido, o PSD Movimentos. A UGT responde por 10,3% do movimento sindical, com quase 1,1 mil sindicatos e 700 mil sócios.

Para repartir os recursos do imposto sindical, referente a um dia de salário de todos os 44 milhões de trabalhadores com carteira assinada do país, o governo leva em conta o número de sindicatos filiados a cada central e o tamanho desses sindicatos, isto é, quantos sócios eles têm.

É preciso obter um mínimo de 7% de representatividade, de acordo com os critérios do governo, para receber uma parte do imposto sindical. Entre 2008, quando o então governo Luiz Inácio Lula da Silva permitiu que as centrais abocanhassem 10% do que é arrecadado com a contribuição, e o ano passado, foram seis as centrais que receberam os recursos: CUT, Força Sindical, UGT, CTB, NCST e Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB). Com o racha na CGTB em meados do ano passado, a entidade não mais atinge o mínimo de 7% (está com 3,4%), e, por isso, deixará de receber recursos a partir deste ano.

O valor total do repasse de imposto sindical neste ano ainda não é conhecido, mas a divisão obedece sempre ao mesmo critério: 60% ficam com sindicatos, 15% com federações, 5% com confederações, 10% com as centrais, e 10% retornam aos cofres públicos. Do R$ 1,4 bilhão do ano passado, as centrais repartiram entre si cerca de R$ 135 milhões. Assim, entre 2008 e 2011, as seis centrais receberam do governo federal pouco mais de R$ 355 milhões. Elas não precisam prestar contas da utilização dos recursos, uma vez que na Lei 11.648, de 2008, o então presidente Lula desobrigou as centrais de responderem ao Tribunal de Contas da União (TCU).

Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), perpetrada pelo DEM no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010 discute o repasse. A votação está suspensa, empatada por três votos a três, e o ministro que pediu vistas no ano passado, Carlos Ayres Britto, assume nesta quinta-feira a presidência do STF.

Em campanha nacional pela abolição do imposto sindical, a CUT já enviou carta ao STF pedindo celeridade à votação. Segundo o presidente da central, Artur Henrique, o imposto sustenta dirigentes sindicais, não sindicatos. "Em vez de depender de uma legislação de 1943, e de recursos do Estado, que chegam com garantia plena e sem esforço ou prestação de contas, defendemos que o sindicato seja sustentado pela própria classe", diz Henrique. "Daí sobrevive apenas quem luta e conquista algo para os trabalhadores", afirma ele, para quem a taxa negocial, proposta pela CUT em substituição ao imposto sindical, poderia render "até mais recursos ao sindicato".

Para Patah, presidente da UGT, a campanha da CUT vai acabar "intensificando" a migração de sindicatos filiados à CUT para outras centrais. Segundo Wagner Gomes, presidente da CTB e ex-dirigente da CUT, a campanha pela extinção do imposto sindical "parte do pressuposto de que os sindicatos poderão sobreviver sem o imposto, como se todos os sindicatos fossem como são os metalúrgicos do ABC", em referência ao mais forte sindicato da CUT.

De acordo com João Carlos Gonçalves, o Juruna, secretário-geral da Força Sindical, a CUT faz a "aposta errada [de criticar o imposto sindical] num momento em que perde representatividade". Para Juruna, o "mercado sindical" atual tem perfil mais conciliador e menos ideológico. "Ao intensificar esse discurso radical, a CUT vai acabar empurrando os sindicatos para as outras centrais", avalia.

Fonte: Adital

terça-feira, 17 de abril de 2012

16 Anos depois: Massacre de Eldorado dos Carajás: relatos e resistência de um povo


Ao se aproximar do local conhecido como “curva do S”, na rodovia PA-150, próximo à cidade de Eldorado dos Carajás (PA), é possível ver pneus com bandeiras vermelhas fincadas, alertando que ali ocorre uma atividade. Neste lugar, no dia 17 de abril de 1996, 19 trabalhadores sem-terra foram assassinados em uma operação da Polícia Militar, quando protestavam na estrada. Em 2012, jovens do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Pará relembram a data através do Acampamento Pedagógico da Juventude, entre os dias 7 a 17 deste mês.

O “Massacre de Eldorado dos Carajás” completa 16 anos em 2012 sem punições de responsáveis, com conquistas dos trabalhadores na região e com a juventude sem-terra aprendendo com seus lutadores e mártires a importância da luta popular. Desde 2006 o Acampamento de jovens é realizado, como conta a integrante da direção estadual do MST, Maria Raimunda César.

“Desde o Massacre de Eldorado dos Carajás fazemos um ato aqui na ‘curva do S’. Um momento de denúncia, de mobilização nacional e internacional em torno da impunidade no campo. E fomos sentido como que a gente transformava isso, um imaginário de luta, de continuidade dessa luta. Que não fosse um lugar que relembrasse a tristeza, mas que trouxesse à memória uma perspectiva de continuidade”.

Segundo Maria Raimunda o acampamento tem o objetivo de lembrar e denunciar a violência contra os camponeses, mas também, construir a formação política e nutrir os sonhos e desejos da juventude. Ela conta que, nestes dias, os jovens sem-terra paraenses erguem seus próprios barracos de lona, se organizam para as tarefas e atividade, além de promoverem ações de denúncia no local.

Em todos os dias do Acampamento, por volta das 17h horas, eles param os dois sentidos da rodovia por 19 minutos e realizam um protesto cultural, em memória daqueles que ali foram mortos. A atividade faz parte da Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária, conhecida como Abril Vermelho.

Juventude sem terra

Um dos organizadores do Acampamento é o jovem dirigente estadual do MST, Cleiton Conceição Almeida. Filho de assentados do Assentamento Palmares, na cidade de Parauapebas, ele explica que muitas crianças que viveram a época do Massacre hoje são jovens. E que a intenção desse encontro é contribuir para a organização dessa nova geração de sem-terra, além de lembrar a história da região.

“E também deixar viva a memória da luta. E, de certa forma, relembrar os companheiros que foram mortos nessa luta, que derramaram sangue para que hoje as pessoas tenham uma residência de qualidade, uma terra para poder trabalhar e tirar seu sustento dali”.

Os temas que os jovens trabalham no encontro são distintos aos que veem na escola. Entre eles está a produção de alimentos saudáveis, com o combate ao uso de agrotóxicos e a favor da agroecologia.

Simbologias

Dois fortes símbolos das lutas e conquistas do local são o monumento em memória dos mártires e, também, o Assentamento 17 de abril. No local onde houve o massacre, 19 troncos de castanheira queimados, que vistos do alto formam o mapa do Brasil, foram erguidos em 1999 em homenagem aos que ali lutaram, como explica Raimunda.

“Cada castanheira representa um companheiro tombado [na luta], mas também a natureza, que está sendo queimada a cada dia pelas grandes empresas, pelo latifúndio. Mesmo para nós que vivemos nessa região, que estamos aqui, sempre é muito forte passar pelo monumento das castanheiras, porque é o contato direto com essa realidade, essa materialidade da luta pela terra aqui na região”.

O monumento das castanheiras foi idealizado pelos sem-terra do sudeste do Pará e desenhado por um artista plástico.

Já o Assentamento 17 de abril, em Eldorado dos Carajás, é fruto da luta desses camponeses. O assentado na área e presidente da associação do local, Ildimar Rodrigues, conta que ali estão 690 casas e estruturas de quadra de esportes, luz elétrica, entre outros; além das plantações dos agricultores.

Um dos orgulhos do local é a escola, construída em 2010, ela atende cerca de 1,1 mil alunos e vai até o 3º ano do ensino médio. Grande, bem cuidada e equipada, a escola recebe crianças e adolescentes do “17 de abril” e de assentamentos vizinhos. O seu nome “Oziel Alves Pereira, é uma homenagem ao jovem de 17 anos morto no massacre, como relata Rodrigues em meio a um grande quarteirão descampado onde será feita uma praça para a comunidade.

“A nossa escola é chamada Oziel Alves Pereira, é um dos nossos militantes que tombou no dia do Massacre. Esse local onde nós estamos é para construir uma praça, Mártires de Abril vai se chamar a praça. Um  Projeto de Lei foi enviado à Câmara Municipal, então são 19 ruas, são 19 nomes das pessoas que tombaram na ‘curva do S’. Os nomes das ruas em memória de cada um que morreu no massacre de Eldorado”.

A principal produção do Assentamento 17 de abril é de gado leiteiro, além de outras atividades agrícolas dos moradores.

Memória da cidade

Na cidade de Eldorado dos Carajás, muitos dos habitantes atuais viviam ali quando o massacre ocorreu. Entre eles está a proprietária de uma pensão, Dona Derci, que vinda do estado de Goiás, decidiu nas terras paraense construir sua vida. Ela conta que nunca pensou em deixar Eldorado dos Carajás, com exceção de um único momento: o dia 17 de abril de 1996. Além de marcada na memória dos que por ali vivem e passam, esta também é a data em que se celebra o Dia Internacional de Luta pela Terra.

Fonte: Radioagência NP

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Inclusão e Exclusão: Todos Somos Bonitos


Por Vinicius Siqueira de Lima

Eu vejo uma coisa muito frequente nas conversas, em programas de TV e, na verdade, em todos os cantos do espaço social de nossa sociedade como um todo: a tentativa de inclusão. No entanto, essa tentativa de inclusão, vale dizer, não se trata de estabelecer uma igualdade social, política e econômica negada historicamente, como no caso das lutas contra o racismo e homofobia, mas sim, na tentativa de inclusão como maneira de (pasmem) evitar os conflitos - que são naturais, por exemplo, nas lutas contra o racismo e homofobia já citados. É uma forma de inclusão que causa mais apatia do que promove a real igualdade em termos políticos, sociais e econômicos, e eu creio que o exemplo de digestão fácil e que, ao mesmo tempo, tem um grande conteúdo, é aquele comum nas escolas primárias: todo mundo é bonito, mas cada um é bonito à sua maneira.


É óbvio que a frase do exemplo não é um fim em si. O conceito que há por trás dela pode ser generalizado para o restante da maneira como, em um mundo multicultural e tolerante, vemos o mundo. Eu creio que ser interessante esse tipo de afirmação, pois ele demonstra, primeiro, que todos são iguais, depois, que todos são diferentes. Há a afirmação de que há uma essência, um núcleo, pertencente a todos os seres humano, ao mesmo tempo que todos são, superficialmente, diferentes. A beleza é única em cada um por que cada um expressa de maneira diferente seu corpo físico, entretanto, a beleza está no núcleo do sujeito – ela está lá, emanando algo comum a todos os humanos que, ao passar por alguns filtros biológicos, se expressa da maneira como vemos no dia a dia.

Se o objetivo da afirmação é retirar as pessoas da exclusão por serem feias (ou estranhas, ou impuras, ou qualquer coisa que possa ser colocado como exclusão), por que manter a dicotomia feio e bonito? A grande jogada do exemplo do primeiro parágrafo é manter o bonito como uma categoria de inclusão, como uma categoria normativa e jogar todos dentro deste alçapão de beleza, porém, para manter todos dentro de um saco é necessário demonstrar uma característica comum que faz todos serem iguais, que aprova a participação de todos no mesmo grupo. Primeiro problema: a beleza não deixou de ser normativa, portanto, não deixou de determinar certas características necessárias para ser belo e certas características necessárias para ser feio.

Reconhecimento e Função de uma Expressão: Sonic Youth

Em "Crítica a uma Cultura Agonizante", Caudwell define a arte como uma função social. Arte não seria, portanto, só a emanação idiossincrática do artista, mas a arte é aquilo que é reconhecido simbolicamente pela sociedade – esse reconhecimento modifica a obra na concepção do artista, pois é colocado um traje social, uma perspectiva socialmente compartilhada em relação ao mundo, inclusive em relação à arte – e, desta forma, classificado dentro do novo contexto que assume. A arte só é arte se consegue entrar em determinados grupos de classificação e, desta forma, cumprir uma função social, assim como ser uma expressão social. Para saber sua expressão social, é necessário, por sua vez, perguntar: que função social a arte está desempenhando?

Porém, essa característica não poderia ser generalizada para todas as formas de associação? Não são todas elas uma expressão social que necessita de reconhecimento simbólico para ser entendida e colocada dentro do nosso espaço social? Desta forma, conseguimos, por exemplo, realizar uma leitura das artes, música, por exemplo, não retendo as impressões superficiais do som, mas analisando a relação do som e do contexto onde ele é expressado, assim como a própria imagem que o som traduz.


Posso tomar como exemplo a banda de rock Sonic Youth, que, embora seja considerada experimental, em seu núcleo carrega a mesma fórmula consonante ocidental. A consonância luta para acontecer e a dissonância é colocada sem conteúdo, sem objetivo – a dissonância aparece mais como uma falha da consonância do que como real expressão de si. A música é igual a qualquer música não experimental, exatamente por ter seu núcleo/contexto igual. Podemos ver isso em sua função social, Sonic Youth sempre foi traduzido como a imagem de o que é uma banda alternativa, de o que é uma banda de garagem e experimental, seu reflexo é a própria expressão de unicidade que cada ouvinte carrega. A banda é underground, portanto, o ouvinte é genuíno, se ele é genuíno de uma expressão experimental/alternativa, então ele é alternativo e experimental.

Qual o problema disto? Sonic Youth deixou de ser undergound desde que todos que participam do grupo designado “rock” a conhecem. Como uma banda é reconhecida como pai do rock de garagem e alternativo se não é amplamente conhecida? No entanto a imagem permanece. Os efeitos do som da banda mostra sua função social: o agrupamento de pessoas que participam de uma expressão superficialmente diferente mas, em seu mais íntimo ser, igual, são também, massa. Mas são uma massa reconhecida pela diferença, mesmo que superficial. Quando há uma ideologia vigente operando nossas relações, a diferença tem como pressuposto uma base que se mostra idêntica e imutável, exterior aos indivíduos – a própria ideologia.

A Indústria Cultural e O Outro Sem Alteridade

Até mesmo como a indústria cultural reproduz o conceito da inclusão, já é notável a forma normativa: nos comerciais de TV, por exemplo, há sempre a presença de algumas mulheres, alguns negros e o restante, isto é, os homens brancos. Qual o ponto? Não há mulheres, homens, negros e brancos, há mulheres, negros e o restante é o normal. O restante não salta os olhos pela diferença. A indústria cultural cumpre seu papel de reproduzir a individualidade que cada sujeito deve ter. Individualismo ilusório.

A liberdade é a liberdade de consumo, que pode ser exemplificada na nova noção de Nerd: se antes, ele era o sujeito desengonçado, hoje, é o sujeito que usa determinadas roupas e acessórios. Antes ser nerd era parte do sujeito, hoje, é o que o sujeito consome.


Retornando ao ponto inicial, incluir todos num mesmo grupo de beleza os classificando dentro dos padrões normativos ainda é manter tais padrões (mantém-se, por consequência, o feio e o bonito) e o efeito imediato é a consideração de que todos que não estão incluídos no padrão normativo não fazem, também, parte da sociedade – o discurso de todos serem bonitos abre espaço para evitar qualquer tipo de conflito entre o feio e o belo, entretanto, ao mesmo tempo que se afirma uma maneira de ser, coloca-se a culpa de não ser bonito no próprio indivíduo. Todos são bonitos, mas desde que colocados dentro de seu espaço social particular – que os feios fiquem satisfeitos em serem reconhecidos bonitos em seus grupos sociais, mas não na regra geral da sociedade. Trago, de volta, o exemplo do nerd, que sempre foi rejeitado pela sociedade, entretanto, agora deve ser feliz por sua beleza ser reconhecida dentro de seu grupo social. O outro é aceito, desde que sem sua alteridade.

Segundo problema: o reconhecimento da beleza dentro dos grupos sociais só ameniza os conflitos entre os grupos da camada normativa e os grupos maginais.

Seguindo Caudwell, a arte, sob perspectiva funcional, tem como o belo, um conceito construído socialmente, que varia conforme há a variação nas estruturas da sociedade, portanto, a noção de estranho, de bonito e de nojento estão todas submetidas a uma base ideológica, reproduzida pela indústria cultural, traduzindo essa suposta cultura que é formada pelas relações sociais e sua leitura ideológica em mercadoria, que, por sua vez, faz todo o diferente ainda ser uma face do igual – vide a ascensão nerd (melhor dizendo, consumo nerd) ou Sonic Youth (melhor dizendo, consumo da unicidade), dois exemplo citados. O consumo destes dois itens se dá pela relação superficial e unicamente assimiladora do sujeito com a coisa. É a fome de receber o prazer que o objeto pode dar.

Violência Simbólica e O Retorno dos Conflitos

Desta forma, a afirmação “Todos são bonitos, porém, cada um à sua maneira” tem como mensagem oculta, além dos pontos já citados, os fundamentos de uma apatia entre grupos sociais. Basicamente, o discurso não elimina as formas de desigualdade, mas as mascara sob um manto de tolerância e vida em harmonia, entretanto, sem identificar uma maneira realmente eficaz de manter a vida em harmonia e tolerante. É óbvio que admitir que uma sociedade (utópica) sem referenciais de julgamento baseados na beleza seria o ideal, entretanto, também se torna uma prática sem nexo contemplar tal sociedade sem modificar as estruturas da sociedade atual, oras, não é possível mudar realmente o pensamento das pessoas sem mudar toda a vida material delas. Chega a ser uma grande trapaça manter as formas da sociedade que garantem certos privilégios para determinados grupos e esperar que uma iluminação interior os transformem em filantropos, que abdiquem de seu poder por uma causa maior.

A forma como o discurso de inclusão é praticado, só se remete à violência mais popular e individual, não se refere à violência simbólica, colocada por Zizek como aquela que se situa na própria linguagem. Luiz Cardoso de Oliveira exemplificou essa violência simbólica com o que ele chamou de insulto moral, onde, apesar de haver leis, regras explícitas que visam manter uma igualdade entre negros e brancos, os primeiros ainda são tratados de forma desigual, recebem sanções morais ou satíricas por serem negros e por “aproveitarem” de um direito tipicamente branco – a igualdade (que ainda é desigualdade) é tida como um favor feito à força para o sujeito inferior negro.

É exatamente com essa violência que tal discurso não se preocupa, aquela que age na/com a própria linguagem, com a própria noção de símbolos construídos socialmente, construídos com base na própria vida e na manifestação da vida em sociedade: no mundo material. Eu creio que mais do que nunca, todos devem admitir sua diferença, aquilo que os torna marginais, e admitir essa marginalidade, pois somente com esses conflitos atualmente desconsiderados como conflitos estruturais, que algum tipo de mudança substancial pode acontecer.

* Vinícius Siqueira de Lima é sociólogo - Publicado na Caros Amigos



Geraldo Cruz: Região Metropolitana não recebeu verbas do governo Alckmin


Em 2011, o governo do PSDB de São Paulo fez aprovar a lei que reorganizava a região metropolitana de São Paulo, enalteceu o papel da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Metropolitano na articulação das políticas implementadas, mas não fez nenhum tipo de investimento para viabilizar as ações prometidas.

Na aprovação da Lei Complementar 1.139/2011, que reorganiza a RMSP, não foi regulamentada a criação do Fundo de Desenvolvimento Metropolitano, proposto e defendido pela Bancada do PT. Na ocasião nossa bancada questionou a ausência de fonte específica de recursos para concretizar as ações previstas na lei.

O governador Geraldo Alckmin garantiu que o Fumefi (Fundo Metropolitano de Financiamento e Investimento) seria integralmente destinado ao financiamento das ações desenvolvidas na região. Estudo realizado pela Liderança do PT na Alesp demonstra que, em 2011, o governo estadual não utilizou nada dos R$ 55 milhões alocados no Fumefi, e que os cerca de R$ 40 milhões utilizados em pagamentos efetivamente realizados referiam-se a restos do ano anterior.

Isto significa que as audiências públicas e debates realizados para discutir a reorganização da RMSP não passaram de encenações destinadas a enganar a população em geral, e prefeitos em particular.

Demos um voto de confiança ao governador, criamos expectativas e apresentamos propostas de ações articuladas para melhorar a condição de vida na RMSP. Todos fomos enganados e o governo do PSDB demonstrou mais uma vez que não é digno de confiança e não se constrange em ludibriar a população, contando com a falta de transparência de seus atos, que impede o acesso à informação.

Trata-se de um modelo de gestão do PSDB. Na Assembleia a bancada governista não cumpre acordos e compromissos assumidos. No Executivo as políticas de inclusão social não existem, e os interesses privados se sobrepõem aos públicos.

O quadro abaixo revela que o governo não usou os recursos do Fumefi em 2011 e, para 2012, destinou o mesmo valor previsto desde 2007. Apesar de alardear as regiões metropolitanas como prioritárias, não aumentou em nada o orçamento.

Também não há qualquer sinalização no sentido da regulamentação do Fundo de Desenvolvimento Metropolitano. Isto significa que pouco ou nada se pode esperar das políticas estaduais para melhorar as condições de vida nos municípios da RMSP.

Fiel aos compromissos assumidos perante a população paulista, a Bancada do PT continuará lutando para que leis e promessas sejam cumpridas. Junto com os moradores do estado, seguimos trabalhando para fazer de São Paulo um lugar bom de viver.

* Geraldo Cruz é deputado estadual pelo PT em São Paulo.

O Pato Donald pode ficar de fora


Em 1939, o fim da influência britânica nas Américas estava consumado, mas os EUA estavam longe de garantir a herança. Franklin Roosevelt teve de fazer sua parte para conquistar corações e mentes na América Latina. Reconheceu a nacionalização das petroleiras anglo-americanas no México, ajudou Getúlio Vargas a criar a Vale do Rio Doce e a CSN com as reservas de ferro expropriadas ao empresário estadunidense Percival Farquhar e até encomendou à Disney a animação Saludos Amigos!, de 1942.

Com o fim da guerra e do Eixo, Washington tornou-se tão hegemônica no Hemisfério Ocidental que não pediu mais desenhos animados sobre a América Latina e em 1950 extinguiu como supérflua a Quarta Frota, criada em 1943 para patrulhar as águas latino-americanas. O continente era seu quintal. A Guatemala podia servir de cobaia de experiências com sífilis que mataram pelo menos 83 entre 1946 e 1948, enquanto o Brasil era forçado a importar quinquilharias para liquidar as reservas acumuladas na guerra, romper relações com a União Soviética e pôr os comunistas na ilegalidade. Desobedientes teriam o destino de João Goulart em 1964 ou Salvador Allende em 1973.

Em 1994, quando a União Soviética já não existia e os EUA convocaram a primeira Cúpula das Américas em Miami para preparar a construção da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), não se concebia oposição. Ainda em 2002, o embaixador dos EUA em La Paz julgava apropriado ameaçar abertamente os bolivianos de represálias caso votassem em Evo Morales. Em 2003, quando Brasília articulava a resistência dos “emergentes” na OMC e na Alca, o subsecretário de comércio exterior de Bush júnior, Robert Zoellick (depois presidente do Banco Mundial) não a levava a sério: zombava que o Brasil, se ficasse de fora, teria de “exportar para a Antártida”.

O tropeço dos EUA na OMC e na Alca e a surpreendente derrota de 2005, quando o socialista chileno José Miguel Insulza, com apoio do Brasil, venceu a disputa pela secretaria-geral da OEA contra o mexicano patrocinado por Washington, foram vistos como anomalias temporárias. Ainda em 2006, The Economist desdenhava o Brasil como “espectador irrelevante” e sua diplomacia como uma “confusão com resultados esquálidos”.

Mas a América Latina se fez notar no radar de Washington, como uma pedra da qual só se toma consciência ao se levar a topada. A criação de um novo psitacídeo carioca por animadores de Hollywood, 69 anos depois do Zé, talvez tenha sido um acaso, mas não o foi a recriação da Quarta Frota quando a China conquistava mercados latino-americanos, a Rússia fazia exercícios militares com a Venezuela, o Equador expulsava a base dos EUA em Manta e o Brasil consolidava na Unasul e no BRICS alianças estratégicas alheias a Washington.

Seis anos depois, a mesma The Economist abre seu comentário sobre a visita de Dilma Rousseff a Barack Obama dizendo que “o Brasil nunca foi tão importante para os EUA quanto agora e os EUA nunca importaram tão pouco para o Brasil”. Não foi preciso exportar para a Antártida: bastou ampliar o mercado interno e o comércio com o Sul e com Pequim – hoje um parceiro comercial mais importante para Brasília que Washington – e eliminar a dependência financeira dos bancos e órgãos multilaterais dominados pelos EUA.

Hugo Chávez, cuja derrota The Economist prevê a cada ano eleitoral, é mais uma vez favorito, apesar de doente, e o que é mais interessante, seu rival Henrique Capriles, que participou do assédio à Embaixada de Cuba durante o fracassado golpe de 2002, hoje posa como centro-esquerda e se diz “bolivariano”, inspirado em Lula e no “modelo brasileiro”.


A Alca morreu e seu ectoplasma, a Cúpula das Américas, corre o risco de ser definitivamente exorcizado. Os EUA voltaram a vetar a participação dos cubanos na Cúpula de Cartagena de 14 e 15 de abril, mas a presidenta Dilma disse a Obama que “todos os países da América Latina têm relações com Cuba e esta é a última Cúpula da qual Cuba não participará”. Obama respondeu? “Não teve de responder. Não foi uma pergunta.” Para o presidente do Equador, Rafael Correa, a de 2009 já foi a última: boicotou a atual como irrelevante para as questões que “importam para a Pátria Grande”, incluindo o bloqueio de Cuba e a colonização britânica das Malvinas, como explicou em carta aberta ao anfitrião colombiano, Juan Manuel Santos.

Santos sentiu-se obrigado a ir em pessoa a Havana desculpar-se e criticar os EUA: “Há certa hipocrisia na forma como tratam Cuba e não aplicam o mesmo padrão a outros”. Dito pelo chefe de um dos governos mais próximos dos EUA no continente, é significativo. Assim como o protesto do notoriamente direitista presidente da Guatemala, general Otto Pérez, quando os EUA vetaram sua pré-cúpula da América Central, na qual pretendia articular com os vizinhos uma posição conjunta da região em favor da legalização das drogas.

Naturalmente, os EUA ainda podem contar com seu peso militar e econômico, principalmente no México e nas frágeis repúblicas da América Central. Mas se dependesse da diplomacia, a influência dos EUA teria caído a zero. As atitudes da Casa Branca na América Latina não são pautadas pela realidade, mas pelas ficções do debate midiático e partidário interno dos EUA.

Obama ganharia a boa vontade de muitos latino-americanos se encerrasse o bloqueio a Cuba, mas seria mais um pretexto para ser acusado de “marxista” pelos republicanos, alguns dos quais pedem o fim da OEA. Em Honduras, ao que tudo indica, o governo democrata cedeu a republicanos e militares e reconheceu o golpe em -troca da nomeação de um funcionário de segundo escalão.

Vencida pela Embraer, uma concorrência do Pentágono foi cancelada para favorecer um pequeno fornecedor local. Em busca do voto anticastrista, republicanos da Flórida atropelam o governo federal, ao qual caberia a política externa, e proíbem o estado e seus municípios de contratarem a -Odebrecht, por esta executar obras em Cuba. Paralisados pela intransigência de suas disputas internas, os EUA podem perder a capacidade de conduzir uma diplomacia coerente nas Américas até que seja tarde demais.

Por: Antonio Luiz M. C. Costa na Carta Capital

Frei Betto: O papa e a utilidade do marxismo


O papa Bento XVI tem razão: o marxismo não é mais útil. Sim, o marxismo conforme muitos na Igreja Católica o entendem: uma ideologia ateísta, que justificou os crimes de Stalin e as barbaridades da Revolução Cultural chinesa. Aceitar que o marxismo conforme a ótica de Ratzinger é o mesmo marxismo conforme a ótica de Marx seria como identificar catolicismo com Inquisição.

Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais útil. Porque já não se justifica enviar mulheres tidas como bruxas à fogueira nem torturar suspeitos de heresia. Ora, felizmente o catolicismo não pode ser identificado com a Inquisição, nem com a pedofilia de padres e bispos.

Do mesmo modo, o marxismo não se confunde com os marxistas que o utilizaram para disseminar o medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa. Há que voltar a Marx para saber o que é marxismo; assim como há que retornar aos Evangelhos e a Jesus para saber o que é cristianismo, e a Francisco de Assis para saber o que é catolicismo.

Ao longo da história, em nome das mais belas palavras foram cometidos os mais horrendos crimes. Em nome da democracia, os EUA se apoderaram de Porto Rico e da base cubana de Guantánamo. Em nome do progresso, países da Europa Ocidental colonizaram povos africanos e deixaram ali um rastro de miséria. Em nome da liberdade, a rainha Vitória, do Reino Unido, promoveu na China a devastadora Guerra do Ópio. Em nome da paz, a Casa Branca cometeu o mais ousado e genocida ato terrorista de toda a história: as bombas atômicas sobre as populações de Hiroshima e Nagasaki. Em nome da liberdade, os EUA implantaram, em quase toda a América Latina, ditaduras sanguinárias ao longo de três décadas (1960-1980).

O marxismo é um método de análise da realidade. E mais do que nunca útil para se compreender a atual crise do capitalismo. O capitalismo, sim, já não é útil, pois promoveu a mais acentuada desigualdade social entre a população do mundo; apoderou-se de riquezas naturais de outros povos; desenvolveu sua face imperialista e monopolista; centrou o equilíbrio do mundo em arsenais nucleares; e disseminou a ideologia neoliberal, que reduz o ser humano a mero consumista submisso aos encantos da mercadoria.

Hoje, o capitalismo é hegemônico no mundo. E de 7 bilhões de pessoas que habitam o planeta, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, e 1,2 bilhão padecem fome crônica. O capitalismo fracassou para 2/3 da humanidade que não têm acesso a uma vida digna. Onde o cristianismo e o marxismo falam em solidariedade, o capitalismo introduziu a competição; onde falam em cooperação, ele introduziu a concorrência; onde falam em respeito à soberania dos povos, ele introduziu a globocolonização.

A religião não é um método de análise da realidade. O marxismo não é uma religião. A luz que a fé projeta sobre a realidade é, queira ou não o Vaticano, sempre mediatizada por uma ideologia. A ideologia neoliberal, que identifica capitalismo e democracia, hoje impera na consciência de muitos cristãos e os impede de perceber que o capitalismo é intrinsecamente perverso. A Igreja Católica, muitas vezes, é conivente com o capitalismo porque este a cobre de privilégios e lhe franqueia uma liberdade que é negada, pela pobreza, a milhões de seres humanos.

Ora, já está provado que o capitalismo não assegura um futuro digno para a humanidade. Bento XVI o admitiu ao afirmar que devemos buscar novos modelos. O marxismo, ao analisar as contradições e insuficiências do capitalismo, nos abre uma porta de esperança a uma sociedade que os católicos, na celebração eucarística, caracterizam como o mundo em que todos haverão de "partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano". A isso Marx chamou de socialismo.

O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx, lançou, em 2011, um livro intitulado O Capital — um legado a favor da humanidade. A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de O Capital, de Karl Marx, publicada em Hamburgo, em 1867.

"Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério", disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. "Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século 20".

O autor do novo "O Capital", nomeado cardeal por Bento XVI em novembro de 2010, qualifica de "sociais-éticos" os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de "selvagem" e "pecado", e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política.

"As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo", afirma o arcebispo.

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de "querido homônimo", falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o autor do Manifesto Comunista se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus.

Frei Betto é autor do romance "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.

Fonte: Brasil de Fato

terça-feira, 10 de abril de 2012

#AraguaiaVive: UJS realiza tuitaço em homenagem ao Araguaia


A guerrilha fora composta em sua maioria por jovens, pessoas como Antônio Ribas, presidente da União Paulista de Estudantes Secundaristas, Helenira Rezende, os corajosos irmãos Maria Lúcia, Lucio e Jaime Petit, Bergson Gurjão, muitas jovens mulheres também participaram da guerrilha, entre elas Áurea Valadão, Dinaelza Coqueiro, Luiza Garlipe, Telma Corrêa, entre outras. Estes jovens tinham em comum a vontade de viver em um país livre e soberano, viviam num regime de exceção que os jogou na ilegalidade, os perseguiu e matou, apenas pelos seus sonhos.

Cumprindo com sua missão, a União da Juventude Socialista, que é a herdeira das dezenas de jovens que doaram suas vidas à causa libertária, realizará no dia 12 de Abril diversos atos por todo o país em homenagem aos jovens guerrilheiros que tombaram no Araguaia.

Os atos também servirão para cobrar que o Estado brasileiro cumpra a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos e localize os corpos dos guerrilheiros do Araguaia, além de pressionar o governo pela imediata instalação da Comissão da Verdade.

Mobilização #NasRedes e Nas Ruas
Ao mesmo tempo, convidamos aos internautas e ciberativistas para um tuitaço com a tag #AraguaiaVive.

Fonte: UJS