As
recentes manifestações ocorridas no Brasil foram a maior mobilização social
ocorrida nas últimas décadas e talvez já tenham superado o movimento dos
cara-pintada na campanha Fora Collor. No calor do momento, como se sabe, a
compreensão de fenômenos desta natureza torna-se mais complexa, a separação
entre novas e velhas formas de mobilização, organização e articulação torna-se
mais difícil, daí a importância de um esforço mais concentrado de reflexão,
principalmente para que possamos compreender como o potencial gerado pela
população nas ruas pode acelerar a velocidade das transformações no país.
As
mobilizações foram bastante positivas, chacoalharam toda a sociedade e
pressionaram os governos e os parlamentos a darem respostas concretas para as
ruas e para as redes. Estamos diante de uma oportunidade para aprofundar as
mudanças em curso no Brasil há uma década, portanto, é importante também
avaliar as contradições e os desafios impostos a partir desse momento.
Nos
últimos anos o projeto democrático e popular provocou profundas transformações:
forte crescimento econômico, ampliação do mercado formal de trabalho e
fortalecimento do Estado, além de importantes avanços na distribuição de renda
e na inclusão social. Este processo fez com que 40 milhões de brasileiros
ascendessem socialmente a partir da ampliação do consumo e da renda. Contudo,
faltaram políticas estruturantes no campo educacional, da saúde e da cultura,
com capacidade de não apenas gerar consumidores, mas cidadãos críticos e
ativos.
O
crescimento das cidades e das regiões metropolitanas, acompanhado pela
especulação imobiliária, pelo modelo rodoviarista e pela ausência da reforma
urbana, intensificou os problemas vividos no dia a dia pelos cidadãos. Grandes
deslocamentos do trabalho para casa, graves problemas de saneamento, serviços
ruins de saúde e educação e ausência de equipamentos culturais e esportivos nas
periferias não permitiram uma ampliação da qualidade de vida tal como o
esperado. Ou seja, a vida melhorou da porta de casa para dentro, mas piorou da
porta de casa para fora.
Portanto,
mesmo que com importantes avanços no Brasil, há de sobra motivo para indignação
e luta. Fica claro essa afirmação, quando analisamos o início do movimento
recente, com a luta pela redução da tarifa dos transportes. O Passe Livre
mobilizou-se em torno de uma causa justa: o alto custo do transporte no
orçamento das famílias que vivem nas cidades, uma pauta de fácil compreensão e
de alto apelo social. O estopim deste processo se deu com a forte repressão
policial ocorrida em São Paulo, que sem nenhum controle e com o aval do
governador do estado promoveu um show de horrores, iniciado na esquina da Rua
da Consolação com a Rua Maria Antônia. Vale destacar: tais práticas violentas
são corriqueiras nas periferias, principalmente nos bailes funks.
Entretanto,
foi apenas a partir desse episódio, que inclusive atingiu jornalistas da grande
imprensa, que as imagens ocuparam os principais veículos de comunicação e
geraram um sentimento de solidariedade de milhares de jovens e da sociedade em
São Paulo e no Brasil.
Erram
aqueles que desqualificam os manifestantes por serem jovens da “classe média” e
também aqueles que consideram um movimento conservador e com predominância da
direita. É importante recuperar as lutas que promoveram transformações no
Brasil como as Diretas Já e o Fora Collor, ambas protagonizadas por jovens de
classe média, brancos. No entanto, existe um fenômeno interessante que vale a
pena destacar: apesar de elevada escolaridade, em comparação com a maioria da
população, a grande maioria dos que foram para as ruas é composta por
trabalhadores mais do que por estudantes. Aliás, parte dos manifestantes são
jovens que ascenderam socialmente com as políticas do período Lula/Dilma, e que
reivindicam novas políticas para que seu direito de acesso à cidadania torne-se
também um direito de acesso ao uso democrático das cidades.
Um
aspecto que merece grande atenção está no fato de que a grande multidão que
veio as ruas não possui representantes tradicionais e intermediários
(partidos/organizações/sindicatos/entidades estudantis), trata-se de um
contingente que veio para as manifestações a partir de articulações realizadas
nas redes sociais. Esse é um fenômeno novo que talvez seja um dos mais difíceis
de compreender e por isso tem provocado respostas equivocadas da esquerda,
principalmente do PT.
É também
verdade que pautas da direita entraram na multidão, contudo, a defesa de saúde
e educação de qualidade, assim como transporte público, demonstram que existe
uma forte demanda por mais Estado e políticas públicas. Ou seja, existe um
desejo pelo aprofundamento das transformações surgindo das ruas e das redes.
Uma das
poucas certezas que um momento como esse nos permite apontar está na
constatação de que há um clamor popular por modificações no modelo democrático
atual, todas as instituições são colocadas em xeque, da esquerda à direita,
partidos e movimentos sociais tradicionais estão sob avaliação.
A reação
violenta de grupos de direita infiltrados, contrários à presença da esquerda
organizada, com forte apoio da massa, assusta e preocupa. Contudo, a resposta
me parece bastante diferente do que tradicionalmente a esquerda sugere. Ligar o
carro de som e empunhar as bandeiras para disputar o movimento a fim de
trazê-lo para a esquerda tem sido uma estratégia bastante usual e muito
equivocada, afinal, o cenário pede menos um embate de quem pretende dirigir o
movimento e mais a agregação de quem se dispõe a realizar uma efetiva disputa
de hegemonia.
No atual
momento é preciso desconfiar de todas as fórmulas prontas e receitas velhas
conhecidas. Para dialogar com este novo fenômeno, que vem se constituindo há
pelo menos 13 anos, é preciso paciência e ousadia. Paciência para compreender
uma nova linguagem política. Ousadia para iniciar a auto-crítica acerca de como
a acomodação institucional e a burocratização tem limitado a criação de novas
respostas, mesmo em partidos sensíveis à voz das ruas como é o caso do PT.
É também
muito importante apresentar uma nova agenda para os nossos governos
democrático-populares. A reclamação sobre a tarifa dos transportes, o
comportamento dos meios de comunicação tradicionais e das novas redes sociais,
assim como a insatisfação com relação à classe política nos obriga a pensar, no
âmbito federal, em questões fundamentais como a justiça tributária, a
democratização da comunicação e a reforma política, e no âmbito municipal nos
impõe o desafio de articular respostas que passam, por exemplo, pelas políticas
de participação e de juventude. Este é o momento de renovar a esquerda
radicalmente.
A
juventude que está nas ruas não aceita mais ser representada por este modelo
vertical de política, mediado por lideranças burocráticas e/ou com concepções
vanguardistas. Essa juventude quer ser ouvida para valer, quer participar da
política de verdade. Essa juventude está convocando a sociedade brasileira a
construir instituições mais participativas, mais permeáveis e mais
transparentes, sua força está na sua pluralidade. Não é possível dirigir e
organizar a pauta dessa multidão nos marcos tradicionais da política, o que
devemos fazer é nos somar, nas ruas e nas redes, a essa voz coletiva que não
quer apenas falar, mas quer sobretudo decidir.
*Gabriel
Medina, psicólogo, foi presidente do Conselho Nacional da Juventude e, é atualmente coordenador de Políticas para a Juventude
da Prefeitura do Município de São Paulo.
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